Lembro que há alguns meses postei aqui o texto "autobiografia temporária de um guerreiro". Àquela época a vida parecia ter mudado para sempre, como se nada mais fosse voltar a ser como era antes. Tinha pra mim que dali em diante tudo seria diferente; um segundo divisor de águas na minha existência. O tempo passou e esse pensamento se manteve forte o suficiente pra me dar toda a esperança que eu precisava. Porém, de uns dias pra cá ele começou a mudar, cambalear e hoje, depois de dois simples acontecimentos - e mais outros não tão significativos -, parece ter caído por terra. Longe de querer fazer drama, de jogar hipérboles ao vento sem necessidade, eu voltei a pensar em desistir. Em desistir de tudo, em por um fim a tudo. A esperança de dias melhores, nesse exato instante, parece ter ruído e eu agora estou novamente perdido. Pensei estar caminhando, indo em frente, mas agora não sei mais se me estava enganando ou não. E eu não consigo conter o nó na garganta, não consigo abafar o sufoco no meu peito, as lágrimas que me tiram o ar e a sensação de que não há mais o que fazer. Se me fosse concedido um desejo agora eu talvez prontamente dissesse que queria sumir, evanescer, desaparecer sem deixar rastros, fazer desse meu lugar no mundo um livro que nunca existiu. E isso dói, dói a dor que não desejo à pessoa mais sem escrúpulos que pisa essa Terra. E eu juro que não sei o que fazer, eu juro que um cego em um tiroteio saberia muito melhor pra onde ir que eu.
Acho que só tenho a pedir perdão a todos que machuquei e aos que ainda hei de ferir. Acho que só tenho desculpas a dar para mim mesmo, pretextos, esvaziados de qualquer verdade, para dar um passo à frente. Porque tudo que quero é desistir, tudo que desejo é não sentir mais essa dor esmagando minha alma. Porque ela dói, dói mais que qualquer outra que eu já tenha sentido; é a dor da esperança perdida pela segunda vez. E agora eu não sei se resisto, não posso assegurar a mim mesmo ou a quem quer que seja que conseguirei acreditar que conseguirei levantar uma vez mais. Me sinto sem forças. É como se tudo que eu tivesse arduamente construído desmoronasse diante de mim, em cima de mim, e eu não enxergasse uma saída. Enfatizando que não tenho a intenção de fazer drama, quero pedir perdão se eu abandonar a batalha, se eu me der por vencido, se me render pela incapacidade de superar esse demônio que me pisoteia. Meu ser é cheio de feridas, muitas superficiais que ainda tento tratar e outras muito profundas, que parecem ter agressiva e incontravelmente emergido no instante em que digito essas palavras.
Eu amo muito todos vocês, vou sempre amar, por mais que eu talvez nunca tenha sabido o significado dessa palavra. Acho que não dá mais pra mim, acho que não há qualquer resquício de fé dentro de mim. Se há, não consigo encontrá-lo agora. E acho que vou ter de deixá-los. Acho que terei de partir, seja da forma que for. E peço perdão por isso também, porque o buraco deixado por alguém que se vai também abre uma ferida. Mas eu confio em vocês, sempre confiei, e sei que saberão lidar com essa possível perda. Talvez eu simplesmente vá para longe, onde ainda se pode alcançar por terra, água ou ar. Talvez eu vá além, onde vocês ainda não estão. Talvez fique por aqui mesmo. Eu não sei, não sei de nada. Só queria algo que fizesse essa dor parar. Daria qualquer coisa por isso. Eu não a quero de volta, não quero tê-la em mim uma vez mais. Talvez amanhã eu acorde e tudo isso que escrevi pareça idiota, mas talvez não. Mais uma vez: não sei. Só me perdoem por tudo que não fui, por todas as minhas falsas promessas, pelos desapontamentos, pelas vezes que ignorei o que de bom grado me fora dado, por tudo que pareci ser sem realmente ser, por todos os meus tropeços e pisões nos seus pés. Não quero ninguém desesperado, me ligando ou me procurando. Preciso de tempo, seja ele do tamanho que for. Se eu me afastar é porque acho necessário. Se me aproximar é pelo mesmo motivo. Mas eu imploro que não venham tentar me confortar; isso só vai tornar tudo ainda mais doloroso. Me deem um tempo. Caso eu decida por desistir deixarei todos avisados. Caso eu mude de ideia, ignorem tudo isso que leram até agora. Não esperem qualquer coisa de mim nesse momento. Estou quebrado e meus minúsculos pedaços estão espalhados por aí. Preciso decidir se os quero de volta, preciso ter certeza de que quero me reconstruir. Tempo é a palavra-chave no meio desse furacão. Como canta a Pitty "Tenta achar que não é assim tão mal, exercita a paciência. Guarda os pulsos pro final, saída de emergência". E seguirei as palavras dela. Por hora, as coisas ficam na incerteza. Vou desaparecer mais do que já tenho feito - conste que isso também é um "talvez"-, mas quiçá eu retorne em breve ou daqui certo tempo. Uma vez mais, por favor, sem dramas ou desesperos. Não estou escrevendo isso pra assustar ninguém (ainda que eu saiba que esse será o efeito para muitos), apenas quero dizer o que se passa comigo nesse instante. Sou um guerreiro, mas nem sempre os guerreiros ganham a guerra. Digamos que eu me retirei do campo por enquanto e ainda preciso pensar se voltarei ou não.
Como eu disse, talvez amanhã nada disso faça sentido algum, mas agora, às 3h46 do dia 06 de fevereiro de 2013, é a maior verdade que tenho a expor. E se você recebeu esse texto é porque é importante para mim. E, novamente, peço que respeite esse meu tempo, que não toque no assunto, que não pergunte se estou bem ou mal. Pode me julgar, achar o que quiser, dizer o que quiser. Se achar válido, jogue todas as suas pedras, diga que estou de frescura ou coisa do tipo. O importante é que quando eu tiver um parecer tratarei de deixá-lo claro a cada um de vocês, mesmo que não queiram mais olhar na minha cara. Cada um faz suas escolhas e eu ainda estou analisando minhas opções antes de fazer as minhas próprias. Se tiverem um tempinho a mais, ouçam "Lost In Paradise", do Evanescene. Explica muito o que sinto.
Sem mais,
Vinicius Medeiros dos Santos
Capita a tutti... ou talvez não.
Guerreiros são guerreiros e fazem zigue, zique, zá!
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
O ciclo do amor
João amava Maria. Maria amava Pedro. Pedro amava Fernando. Fernando amava Lúcia. Lúcia... bem, Lúcia, coitada, nem sabia o que era amor. Ninguém ocupava qualquer espaço em seu coração. Tudo bem, não sejamos mentirosos; Lúcia tinha amor pelo seu cachorro, Pardo, e nesse caso o sentimento era recíproco. Ou pelo menos parecia ser. Difícil discutir os sentimentos de um animal, pois o ser em questão não pode dizê-los. Ainda assim, ela acreditava ser correspondida pelo pequeno mostrengo de quatro patas. Baseava sua fé nas lambidas que levava na cara e na festa que o bicho fazia quando ela chegava em casa, depois de um longo e exaustivo dia de trabalho. Lúcia estava longe de ser rica, mas isso não a perturbava. Vivia muito bem, obrigada, em seu apartamento de 37 m2 e nem lhe passava pela cabeça ter algo maior. Casa grande dava trabalho, pensava, e já lhe bastava a escravidão que vivia como secretária, o chefe chato que lhe atormentava com cobranças quase que de hora em hora, os clientes metidos que pensavam serem os donos do mundo e, pra completar, a ausência de ar-condicionado na recepção - isso pode até parecer supérfluo, mas vestir traje social num escritório abafado, com a temperatura lançando-lhe seus 36ºC não é desafio para qualquer um. Ainda assim, melhor aquilo que nada.
No auge de seus 24 anos mal sabia o que era universidade. Terminara o ensino médio a duras penas. Era órfã, ou quase isso. Seus pais, numa ensolarada manhã de domingo, deixaram-na com a avó para, teoricamente, ir à feira no interior e comprar alguns itens de decoração para a casa. "Isso aqui está muito morto. Olha essa sala! Parece uma mistura de nada com merda nenhuma. Dá até depressão. Quero cor, muita cor!", dizia a mãe praticamente todos os dias, quase como uma reza ou um mantra. O pai, por sua vez, contentava-se em assentir com a cabeça e fingir concordar com a mulher. "Fosse como fosse, não haviam de ficar muito por lá". Como eu disse antes, numa bela manhã ensolarada de domingo ambos saíram para comprar coisas novas para a casa. Essa era a dita intenção, no entanto, na prática, nunca mais retornaram. Sabe-se lá onde se enfiaram. Fato é que nem a polícia conseguiu encontrá-los. Mais um dos muitos mistérios que atormentam a humanidade - ou, pelo menos, uma parte ínfima da mesma. Lúcia passou a viver com a sua avó, Madalena, uma senhora beirando os 90 anos e com todos os "cri-cris" de uma pessoa em sua idade. Chata que só, mas pelo menos cozinhava maravilhosamente bem. Um anjo com a comida, um demônio com as pessoas.
Cinco anos mais tarde, quando Lúcia já tinha 19 anos e cursava o primeiro ano do antigamente chamado colegial, um AVC fatal levou a velha embora do mundo dos mortais. A garota viu-se sozinha, forçada a cuidar de si própria. Usou suas parcas economias, endividou-se com três ou quatro empréstimos e finalmente conseguiu um emprego como servente num desses fast-foods da vida. Mudou-se para o apartamento em que hoje vive, numa rua quase bonita de dia, porém medonha depois do soar do sino da igreja, às 18h. Quatro meses depois livrou-se de dois dos empréstimos que fizera - os de menor valor, diga-se de passagem - e resolveu se dar o luxo de adotar um cachorrinho. Desde pequena lhe agradavam os animais, ainda que seus pais nunca a tivessem permitido ter mais que um pequeno aquário com um peixe beta. A vida parecia, então, caminhar um pouco; agora tinha emprego, um lar, menos dívidas e um companheiro peludo babão que vivia a roer os móveis velhos e mofados que Lúcia comprara no mercado informal.
Mais alguns anos transcorreram até que chegássemos ao momento citado no começo de nossa história. A moça pediu demissão do emprego de garçonete, formou-se no ensino médio e começou a trabalhar no escritório do senhor Rubens. O novo salário não chegava sequer perto dos quatro dígitos, mas servia. Como já sabemos, Lúcia não era uma mulher de grandes ambições. Mais dinheiro não lhe interessava e nem estava disposta a batalhar muito por um cargo melhor. Não que gostasse do que fazia ou tivesse algum carinho por seu chefe; simplesmente chegara à conclusão que os penosos meios talvez não valessem os não tão gloriosos fins. "Em time que está ganhando não se mexe", dizia a si mesma. E assim seguia sua vida, entre escândalos do patrão e a baba de seu cão. Tudo muito normal, muito rotineiro. Às vezes alguns gritos lhe acordavam no meio da noite. Vinham de sua rua, de mulheres sendo assaltadas ou pessoas aleatórias brigando. Contudo, isso também era quase uma rotina; acontecia mais ou menos de três em três dias, como já havia calculado. No escritório, entretanto, voz alta e palavrões equivaliam a "Bom dia. Tudo bem?". Quando já havia se habituado, um incidente inesperado se chocou contra sua realidade. Aliás, todos sabemos por experiência que a vida sempre, quando excessivamente entediada, encontra um jeito de sair do marasmo maçante na qual tentamos colocá-la. Bem, deixe-me explicar melhor o ocorrido.
Numa segunda chuvosa e gélida, Lúcia fazia seu trabalho habitual. O relógio contava, um tanto quanto apressado, 9 ou 8 minutos restantes para as onze da manhã. Ela, porém, digitava calmamente, quase como se estivesse caçando migalhas entre as teclas. Foi quando um homem, muito mais apressado que o relógio, entrou correndo na recepção, parando de súbito no balcão de Lúcia.
- O doutor Rubens se encontra? - perguntou ofegante.
Lúcia, um tanto desbaratinada, tratou de responder-lhe sem delongas.
- Não. Já deveria estar aqui, mas a chuva deve tê-lo atrasado.
- Puta que pariu, que sorte do caralho que eu tenho! - gritou o homem, exibindo uma expressão de descomunal alívio.
- Perdão, - interrompeu ela, um tanto constrangida com o palavreado do rapaz - gostaria de deixar recado?
- Não, não. Não precisa. Vou aguardá-lo aqui mesmo.
Sem pestanejar, o rapaz, que vestia camisa verde-musgo e calça social preta, puxou uma cadeira para si.
- Você não tem ideia da merda de tempo que está lá fora! - falou ele, puxando assunto sem a consciente intenção de fazê-lo. A cidade está um caos absoluto. Mal dá pra dirigir ou andar na rua. E pra completar - e aqui ele elevou um pouco a voz, adicionando a ela um certo tom de raiva - um filho da puta passou perto de mim com aquela bosta de carro e molhou minha calça inteira.
Ele segurou com força a barra da perna direita e mostrou a ela, que olhou rapidamente, como que por educação, e logo voltou sua atenção à sua tarefa. Absolutamente presumível que a minúscula experiência em lidar com pessoas deixava-a excessivamente transtornada nos momentos em que precisava fazê-lo. Nunca tivera o que se pode chamar de "relações sociais". Nenhuma amiga, pais praticamente inexistentes. Sua experiência mais íntima e profunda era certamente a que tinha com seu cachorro.
- E o seu nome, moça, qual é?
- Lu-luci-lúcia. É Lúcia, senhor - respondeu de imediato.
- Ora, - falou ele, levantando-se instantaneamente - não precisa ficar com vergonha, Lúcia. Eu não mordo, - prosseguiu, apoiando-se sobre o balcão da recepção - prometo! Aliás, só mordo, mas ainda bem de leve, se você pedir com jeitinho.
Ele mordeu o lábio inferior e esboçou um sorriso sedutor. Lúcia pregou os olhos na tela do computador como se o próprio Diabo estivesse de pé ao seu lado e a simples ideia de olhar para ele atemorizasse cada fio de cabelo seu. Manteve-se calada, a respiração ofegante contida e o coração batendo mais rápido que o normal. Olhou furtivamente para o relógio só para constatar que a conversa toda havia levado menos de quatro minutos. Quatro minutos que lhe tinham passado como quatro horas.
- E não vai perguntar meu nome, querida? - falou o homem, inclinando-se mais sobre o balcão para olhá-la mais de perto.
- Qual é o seu nome?
- Por que não olha nos meus olhos pra perguntar isso?
Lúcia não queria, mas fez como o rapaz havia pedido. Antes que possamos prosseguir, acho de grande importância falar sobre os olhos dele. Não eram azuis, menos ainda verdes. Escuros também não. A cor ficava entre castanho claro e castanho médio, pendendo mais para o primeiro. Pareciam duas castanhas pequenas e perfeitamente esculpidas. A pupila dilatada deixava-os com um aspecto mais profundo, como se pudesse penetrar no mais recôndito canto da alma de Lúcia e escrutinar tudo que ela sequer sabia pensar. Como fortes ondas misturadas à areia da praia, arrastaram a pobre mulher sem dar-lhe tempo de nadar ou gritar por socorro. Ao recobrar parte de sua consciência, ela se encontrava encarando o homem, imersa num silêncio quase fúnebre e inquebrável. Percebeu o papelão que deveria estar passando e agiu o mais rápido que seu cérebro conseguiu ordenar.
- Perdoe minha falta de educação, senhor. É que estou tão atarefada com as coisas que seu Rubens me pediu... Mas então, qual seria seu nome?
E agora, precisamente quando Lúcia conseguira respirar melhor, o papo foi bruscamente interrompido. Seu patrão adentrou a sala numa visível pressa. Ao avistar o homem que o esperava, não tardou a despejar cortesias sobre ele. Nada constrangido, o rapaz ignorou a presença da recepcionista e chamou Rubens para que fossem para a sala deste, pois precisavam "ter uma conversa séria e inadiável". Ambos dirigiram-se ao mencionado lugar e Lúcia retornou à sua deprimente solidão. Mesmo assim, já não sentia estar tão só. O perfume do rapaz ainda impregnava o local, sua voz marcante e despojada ecoava pela sala, seus olhos, arrebatadores e inesquecíveis, pareciam ainda obervá-la. Quando se deu conta, o estrago já estava feito. A imagem do homem ficara gravada em sua mente, coisa que, ao seu ver, não deveria estar acontecendo.
Bem, acho que você, caro leitor ou leitora, há de concordar comigo em um ponto: coração acelerado e lembrança insistente da imagem de uma pessoa, assim como de sua voz, cheiro e personalidade são indícios de um distúrbio gravíssimo. Geralmente os sintomas persistem por semanas, meses ou até anos e a parte mais desesperadora é saber que nenhum médico ou guru pode curar a doença que chamamos de amor - ou paixão, se assim lhe soar melhor. Descargas de adrenalina, endorfina, oxitocina, serotonina, vasopressina, dopamina, entre outros, viciam o organismo e te fazem desejar o objeto amado cada vez mais. Claro que Lúcia nem fazia ideia de todo esse processo químico ocorrendo freneticamente em seu corpo e optou por jogar a culpa do problema, após dias de divagação, no "estúpido coração". Pobre órgão esse, tantas vezes injustamente acusado por atos perpetrados pelo cérebro, a mesma massa cinzenta que insistimos em idolatrar como um símbolo de racionalidade.
O tempo passou, correu, voou e a pobre moça viu seu quadro se agravar ainda mais. Começou a sonhar com o rapaz, ver a face dele nos rostos de outros homens, sentir a presença e o toque dele - ainda que esse último não tivesse tido a oportunidade de experimentar - e, em dado momento, percebeu que estava até falando do dito cujo para seu cachorro. Foi nessa hora que ela entendeu a necessidade urgente, alarmante, inevitável de tomar uma atitude em relação àquele fogo queimando em seu peito. "Da próxima vez que o vir, puxarei assunto. Quero passar essa história a limpo", afirmou veementemente. Ao contrário de muitas promessas que fazemos durante nossa longa breve vida, essa foi de fato levada a cabo, ainda que não da forma planejada.
No dia seguinte, mais precisamente um sábado, aguardou ansiosamente pela chegada do homem. "Primeiro perguntarei o nome dele, depois o chamarei para comer alguma coisa assim que meu expediente terminar". "Não, não posso fazer isso! Onde estou com a cabeça? Ele é maluco, fala palavrões. Não está certo." "Mas e se ele corresponder? E se estiver pensando em mim, nas mesmas coisas que eu? Pode ser que sinta minha falta, pode, sim." "Cala a boca, Lúcia! Que coisa mais sem cabimento. Você nunca ficou assim por alguém, não é hoje que vai começar." "Mas eu não perco nada em tentar, posso até conseguir algo além de um cumprimento. "Vai conseguir no máximo uma bela risada de deboche, isso sim! Quando que um homem daqueles vai olhar pra uma mera secretária feia igual a você?" "E se ele olhar? E se ele quiser me conhecer melhor? "Te conhecer melhor? Você acha mesmo que tem tanta coisa assim pra oferecer?" "Acho que vale a pena dar uma chance a mim mes...
- Lúcia, Lúcia? Quê que você tem, mulher? Ficou surda ou está se fazendo de idiota, hem?
O senhor Rubens estava parado à sua frente, com o rosto enrugado e uma expressão de buldogue ameaçador.
- Responde, minha filha! O gato comeu sua língua por algum acaso?
- Não, não. Perdão, senhor, é que ontem na minha rua aconteceu um...
- Eu lá quero saber o que acontece ou deixa de acontecer na sua vida? Toma! Quero tudo isso digitado pra ontem!
Ele colocou - melhor dizendo, jogou - uma pilha de papéis no balcão da recepção e deixou o escritório com sua postura arrogante corriqueira.
- Ai, só essa que me faltava - resmungou. Esse velho chato vir me dar ainda mais trabalho. Revirou a pilha e percebeu que as páginas eram infinitas. Vou ficar aqui até amanhã fazendo isso.
Ela deitou a cabeça sobre o teclado, desolada. Droga de emprego, droga de vida, droga de Rubens, droga de...
- Olá! O senhor Rubens está?
Aquela voz, o perfume... Não, não podia ser. Era, era, era... quem era mesmo? Qual era o nome dele, meu Deus? Lúcia ergueu a cabeça. Tentou se ajustar na cadeira, mas levou um baita tombo.
- Calma, Lúcia! Vem, eu te ajudo.
O homem pegou nos braços dela e ajudou-a a levantar. Os olhos, os olhos...
- Eu consigo sozinha! - gritou, arrependendo-se logo em seguida.
- Nossa, pra que tanta grosseria? Só quis ajudar!
A loucura lhe tomou de vez.
- Ajudar o cassete! Você quer é acabar com a minha vida, isso sim! Sabia que faz quatro semanas que não tiro você da cabeça? Que sonho contigo todas as noites? Que te vejo andando na rua quando você nem está lá? Que fico falando de você para meu cachorro? Mas você fica aí com essa prepotência toda e eu sou uma estúpida, uma idiota por sentir essas coisas. Claro que você nunca vai olhar para mim! Onde é que eu estou com a cabeça? Nem o seu nome eu sei, nem isso! O senhor Rubens saiu, foi embora, morreu! Agora vá embora também antes que eu lhe meta um tapa no meio da cara pra largar de ser imbecil.
O homem estava estático. Lúcia tombou na cadeira e se pôs a chorar descontroladamente. Ele não sabia o que fazer, então apenas se aproximou e lhe deu um abraço. Nesse momento, ela praticamente morreu e ressuscitou. Primeiro porque jamais havia recebido um abraço tão sincero, segundo porque não estava preparada para aquilo e terceiro... Ah, de que importa? Estava bem e isso era o bastante.
- Mas que palhaçada é essa aqui?
- Rubens, eu posso explicar. Ela caiu da cadeira e eu fui ao seu socorro. Ela poderia ter se machucado ou coisa do tipo.
- É uma inútil essa mulher! Tá chorando ainda por cima? Com tanta coisa pra fazer e ainda fica com melindres?
Uma explosão de raiva, angústia, ódio, tristeza, desespero, sentimento de inferioridade e um nó na garganta sufocante tomaram conta dela e sua primeira reação foi se pôr de pé e sair correndo desvairadamente para a rua. Começava a chover. Seu cabelo se desfez, a chuva piorou, sua maquiagem borrou e seus olhos, vermelhos, derramavam cascatas de lágrimas. Ela não conseguia sequer respirar. Foi então que duas mãos lhe agarraram, puxando-na para debaixo de um toldo.
- Você ficou maluca? Por que disse tudo aquilo?
- Porque é a verdade! Essa merda de emprego, merda de vida, - ela falava soluçando de tanto chorar - merda de chefe... Eu mesma sou uma merda!
- Para com isso, mulher! Parece que tem problema mental.
- Meu maior problema é você! A vida já estava uma grande bosta e aí você resolveu aparecer nela, com esse charme todo. Eu estou falando palavrões, coisa que nunca fiz, e nem o seu nome eu sei!
- É João.
Ela se calou. Se afundou nos olhos dele, observou a sua volta e disparou em direção à sua casa. Nem quis olhar para trás. "Por que comigo?". Chegou ao seu prédio, subiu as escadas, entrou em seu apartamento e desatou a quebrar tudo na casa. Pratos, copos, televisão, estante... Tudo voou para o chão e paredes em questão de segundos. Foi então que se deu conta que Pardo estava tremendo de medo e a olhava firmemente, seus olhos mais esbugalhados que de costume. Ela tentou se aproximar, o cão rosnou. Sentindo suas pernas fraquejarem, se deixou cair na cama e chorar até seu corpo tremer e lhe faltar o ar. Agora até seu cachorro a rejeitava. "Inferno de vida maldita!". Pardo subiu na cama, aparentemente compadecido do sofrimento de sua dona, e deitou na barriga dela. Lúcia não resistiu muito tempo e o sono a pegou desprevenida. Naquela noite com nada sonhou. Acordou ao amanhecer, com o cão babando em sua cara. Percebeu que deveria ter perdido a hora de ir para o trabalho. Olhou seu celular; sessenta e duas ligações perdidas do escritório. Esfregou seus olhos, se levantou com cuidado para que o bicho não acordasse, tirou a roupa molhada do dia anterior e aproveitou o frio para vestir uma blusa e esconder seu cabelo despenteado e a cara amassada.
Quando pôs o primeiro pé na rua sentiu certo alívio. Parecia que seus problemas haviam ficado no ontem. Se recordava de pouca coisa, mas algo muito importante havia mudado. Ela sorriu, agradecendo a Deus por ter tido aquele ataque de insanidade e jogado tudo pro alto. Provavelmente seria demitida, porém simplesmente não conseguia se importar. Ia fazer o que não fazia há anos: ir a um restaurante. Achou um que servia comida italiana e entrou, ignorando absolutamente suas roupas horríveis e sua face manchada pelo rímel, blush, sombra e todas essas coisas que mulheres insistem em colocar no rosto para disfarçar a beleza natural. Sentou-se à mesa e esperou pelo atendimento. O dia estava nublado, mas o sol parecia lhe sorrir por detrás das nuvens. "Que se dane tudo! Hoje nada me abala!".
Mal sabia ela que estava redondamente enganada. Um homem adentrou o recinto de mãos dadas com uma mulher muito bonita. Lúcia sentiu o perfume e na hora lhe veio à cabeça a imagem de João. Viu os dois caminharem até o balcão e pedirem algo para beber. A mulher ria, mas não parecia feliz. O homem não mostrava a face e a conexão entre eles ecoava ruídos desconcertantes, somente audíveis àqueles que um dia já se apaixonaram. Quando ele se virou de lado para beijá-la a boca, a suspeita de Lúcia foi confirmada: era João, o mesmo João que lhe atormentava o pensamento há mais de um mês. Ela simplesmente se levantou e foi embora, seus olhos mareados. O sol surgiu, quase se opondo à infelicidade que ela sentia naquele momento. Pensou em fugir de tudo, mas logo lembrou que era pobre e não conseguiria se sustentar por muito tempo. Tomou outra decisão, contrária à anterior, típica das pessoas que não se atrevem a arriscar.
Chegou ao seu prédio, alçou penosamente seu andar e foi tomar um banho. Ao sair, discou o número do seu trabalho e avisou a Rubens que logo estaria lá, mesmo que tudo aquilo estivesse acontecendo em pleno domingo. Ele gritou ao telefone e ela apenas escutou, pedindo perdão enquanto se arrumava. Nesse dia não quis se maquiar. Pegou sua bolsa, deixou comida para Pardo e lhe acariciou a barriga. O cachorro abriu os olhos, mas logo se entregou ao cansaço e dormiu. Ela sorriu como se chorasse e se foi de seu apartamento, decidida a esquecer de vez aquele homem que tanto a fizera sofrer.
O sol lançou-lhe seus raios, o calor ardeu em sua nuca. Ela abriu a porta do escritório e subiu as escadas. Rubens a esperava e quando a viu não lhe disse palavra. Apenas apontou para a pilha de papéis que ficara ali desde o outro dia. Ela sentou-se atrás de seu computador e pensou nas mil coisas que poderia estar fazendo numa manhã ensolarada de domingo. Olhou para o relógio que já se mostrava apressado; oito ou nove minutos para as onze. Dessa vez, no entanto, ele competia consigo mesmo. Ninguém para entrar correndo na sala, nenhum perfume ou voz a tomarem conta do ambiente. Só folhas e um teclado velho. Lembrou de seus pais, olhou o calendário e então recordou o quão especial era aquela data: há exatos dez anos eles a haviam abandonado. Limpou rápido uma lágrima solitária que escorreu pelo seu rosto.
Quatro minutos haviam se passado e Pardo invadiu seu pensamento. Essa noite, quando voltasse para o seu lar, ele certamente faria uma festa e lhe lamberia a cara. Ela, por sua vez, arrumaria a casa e no dia seguinte faria mais um empréstimo para comprar tudo que em seu ataque de fúria havia quebrado. Vale lembrar que Lúcia não tinha ambições. Vivia muito bem, obrigada, em seu minúsculo apartamento. Não desejava mais dinheiro, menos ainda amor. Aliás, ter este passava longe de seus planos. Preferia não ser amada e esquecer que um dia amara. Lembrou da cena do casal se beijando e por breves segundos sentiu vontade de expelir sua alma pelos olhos, mas conteve suas lágrimas.
Bem, o que Lúcia não imaginava era que a mulher junto a João se chamava Maria. E ela realmente não esta estava feliz ao lado dele, pois em seu coração só havia Pedro. Mas Pedro não a amava, como já sabemos. Pedro era perdidamente apaixonado por Fernando, embora este só tivesse olhos para Lúcia. Mas não a Lúcia que conhecemos, e sim uma outra que não o queria. A nossa Lúcia, bem, ninguém jamais amara. Exceto, é claro, Pardo, seu cachorro tão querido. E nesse caso o sentimento era recíproco ou, pelo menos, parecia ser. Difícil discutir os sentimentos de um animal, pois o ser em questão não pode dizê-los. Ainda assim, ela acreditava ser correspondida pelo mostrengo de quatro patas.
No auge de seus 24 anos mal sabia o que era universidade. Terminara o ensino médio a duras penas. Era órfã, ou quase isso. Seus pais, numa ensolarada manhã de domingo, deixaram-na com a avó para, teoricamente, ir à feira no interior e comprar alguns itens de decoração para a casa. "Isso aqui está muito morto. Olha essa sala! Parece uma mistura de nada com merda nenhuma. Dá até depressão. Quero cor, muita cor!", dizia a mãe praticamente todos os dias, quase como uma reza ou um mantra. O pai, por sua vez, contentava-se em assentir com a cabeça e fingir concordar com a mulher. "Fosse como fosse, não haviam de ficar muito por lá". Como eu disse antes, numa bela manhã ensolarada de domingo ambos saíram para comprar coisas novas para a casa. Essa era a dita intenção, no entanto, na prática, nunca mais retornaram. Sabe-se lá onde se enfiaram. Fato é que nem a polícia conseguiu encontrá-los. Mais um dos muitos mistérios que atormentam a humanidade - ou, pelo menos, uma parte ínfima da mesma. Lúcia passou a viver com a sua avó, Madalena, uma senhora beirando os 90 anos e com todos os "cri-cris" de uma pessoa em sua idade. Chata que só, mas pelo menos cozinhava maravilhosamente bem. Um anjo com a comida, um demônio com as pessoas.
Cinco anos mais tarde, quando Lúcia já tinha 19 anos e cursava o primeiro ano do antigamente chamado colegial, um AVC fatal levou a velha embora do mundo dos mortais. A garota viu-se sozinha, forçada a cuidar de si própria. Usou suas parcas economias, endividou-se com três ou quatro empréstimos e finalmente conseguiu um emprego como servente num desses fast-foods da vida. Mudou-se para o apartamento em que hoje vive, numa rua quase bonita de dia, porém medonha depois do soar do sino da igreja, às 18h. Quatro meses depois livrou-se de dois dos empréstimos que fizera - os de menor valor, diga-se de passagem - e resolveu se dar o luxo de adotar um cachorrinho. Desde pequena lhe agradavam os animais, ainda que seus pais nunca a tivessem permitido ter mais que um pequeno aquário com um peixe beta. A vida parecia, então, caminhar um pouco; agora tinha emprego, um lar, menos dívidas e um companheiro peludo babão que vivia a roer os móveis velhos e mofados que Lúcia comprara no mercado informal.
Mais alguns anos transcorreram até que chegássemos ao momento citado no começo de nossa história. A moça pediu demissão do emprego de garçonete, formou-se no ensino médio e começou a trabalhar no escritório do senhor Rubens. O novo salário não chegava sequer perto dos quatro dígitos, mas servia. Como já sabemos, Lúcia não era uma mulher de grandes ambições. Mais dinheiro não lhe interessava e nem estava disposta a batalhar muito por um cargo melhor. Não que gostasse do que fazia ou tivesse algum carinho por seu chefe; simplesmente chegara à conclusão que os penosos meios talvez não valessem os não tão gloriosos fins. "Em time que está ganhando não se mexe", dizia a si mesma. E assim seguia sua vida, entre escândalos do patrão e a baba de seu cão. Tudo muito normal, muito rotineiro. Às vezes alguns gritos lhe acordavam no meio da noite. Vinham de sua rua, de mulheres sendo assaltadas ou pessoas aleatórias brigando. Contudo, isso também era quase uma rotina; acontecia mais ou menos de três em três dias, como já havia calculado. No escritório, entretanto, voz alta e palavrões equivaliam a "Bom dia. Tudo bem?". Quando já havia se habituado, um incidente inesperado se chocou contra sua realidade. Aliás, todos sabemos por experiência que a vida sempre, quando excessivamente entediada, encontra um jeito de sair do marasmo maçante na qual tentamos colocá-la. Bem, deixe-me explicar melhor o ocorrido.
Numa segunda chuvosa e gélida, Lúcia fazia seu trabalho habitual. O relógio contava, um tanto quanto apressado, 9 ou 8 minutos restantes para as onze da manhã. Ela, porém, digitava calmamente, quase como se estivesse caçando migalhas entre as teclas. Foi quando um homem, muito mais apressado que o relógio, entrou correndo na recepção, parando de súbito no balcão de Lúcia.
- O doutor Rubens se encontra? - perguntou ofegante.
Lúcia, um tanto desbaratinada, tratou de responder-lhe sem delongas.
- Não. Já deveria estar aqui, mas a chuva deve tê-lo atrasado.
- Puta que pariu, que sorte do caralho que eu tenho! - gritou o homem, exibindo uma expressão de descomunal alívio.
- Perdão, - interrompeu ela, um tanto constrangida com o palavreado do rapaz - gostaria de deixar recado?
- Não, não. Não precisa. Vou aguardá-lo aqui mesmo.
Sem pestanejar, o rapaz, que vestia camisa verde-musgo e calça social preta, puxou uma cadeira para si.
- Você não tem ideia da merda de tempo que está lá fora! - falou ele, puxando assunto sem a consciente intenção de fazê-lo. A cidade está um caos absoluto. Mal dá pra dirigir ou andar na rua. E pra completar - e aqui ele elevou um pouco a voz, adicionando a ela um certo tom de raiva - um filho da puta passou perto de mim com aquela bosta de carro e molhou minha calça inteira.
Ele segurou com força a barra da perna direita e mostrou a ela, que olhou rapidamente, como que por educação, e logo voltou sua atenção à sua tarefa. Absolutamente presumível que a minúscula experiência em lidar com pessoas deixava-a excessivamente transtornada nos momentos em que precisava fazê-lo. Nunca tivera o que se pode chamar de "relações sociais". Nenhuma amiga, pais praticamente inexistentes. Sua experiência mais íntima e profunda era certamente a que tinha com seu cachorro.
- E o seu nome, moça, qual é?
- Lu-luci-lúcia. É Lúcia, senhor - respondeu de imediato.
- Ora, - falou ele, levantando-se instantaneamente - não precisa ficar com vergonha, Lúcia. Eu não mordo, - prosseguiu, apoiando-se sobre o balcão da recepção - prometo! Aliás, só mordo, mas ainda bem de leve, se você pedir com jeitinho.
Ele mordeu o lábio inferior e esboçou um sorriso sedutor. Lúcia pregou os olhos na tela do computador como se o próprio Diabo estivesse de pé ao seu lado e a simples ideia de olhar para ele atemorizasse cada fio de cabelo seu. Manteve-se calada, a respiração ofegante contida e o coração batendo mais rápido que o normal. Olhou furtivamente para o relógio só para constatar que a conversa toda havia levado menos de quatro minutos. Quatro minutos que lhe tinham passado como quatro horas.
- E não vai perguntar meu nome, querida? - falou o homem, inclinando-se mais sobre o balcão para olhá-la mais de perto.
- Qual é o seu nome?
- Por que não olha nos meus olhos pra perguntar isso?
Lúcia não queria, mas fez como o rapaz havia pedido. Antes que possamos prosseguir, acho de grande importância falar sobre os olhos dele. Não eram azuis, menos ainda verdes. Escuros também não. A cor ficava entre castanho claro e castanho médio, pendendo mais para o primeiro. Pareciam duas castanhas pequenas e perfeitamente esculpidas. A pupila dilatada deixava-os com um aspecto mais profundo, como se pudesse penetrar no mais recôndito canto da alma de Lúcia e escrutinar tudo que ela sequer sabia pensar. Como fortes ondas misturadas à areia da praia, arrastaram a pobre mulher sem dar-lhe tempo de nadar ou gritar por socorro. Ao recobrar parte de sua consciência, ela se encontrava encarando o homem, imersa num silêncio quase fúnebre e inquebrável. Percebeu o papelão que deveria estar passando e agiu o mais rápido que seu cérebro conseguiu ordenar.
- Perdoe minha falta de educação, senhor. É que estou tão atarefada com as coisas que seu Rubens me pediu... Mas então, qual seria seu nome?
E agora, precisamente quando Lúcia conseguira respirar melhor, o papo foi bruscamente interrompido. Seu patrão adentrou a sala numa visível pressa. Ao avistar o homem que o esperava, não tardou a despejar cortesias sobre ele. Nada constrangido, o rapaz ignorou a presença da recepcionista e chamou Rubens para que fossem para a sala deste, pois precisavam "ter uma conversa séria e inadiável". Ambos dirigiram-se ao mencionado lugar e Lúcia retornou à sua deprimente solidão. Mesmo assim, já não sentia estar tão só. O perfume do rapaz ainda impregnava o local, sua voz marcante e despojada ecoava pela sala, seus olhos, arrebatadores e inesquecíveis, pareciam ainda obervá-la. Quando se deu conta, o estrago já estava feito. A imagem do homem ficara gravada em sua mente, coisa que, ao seu ver, não deveria estar acontecendo.
Bem, acho que você, caro leitor ou leitora, há de concordar comigo em um ponto: coração acelerado e lembrança insistente da imagem de uma pessoa, assim como de sua voz, cheiro e personalidade são indícios de um distúrbio gravíssimo. Geralmente os sintomas persistem por semanas, meses ou até anos e a parte mais desesperadora é saber que nenhum médico ou guru pode curar a doença que chamamos de amor - ou paixão, se assim lhe soar melhor. Descargas de adrenalina, endorfina, oxitocina, serotonina, vasopressina, dopamina, entre outros, viciam o organismo e te fazem desejar o objeto amado cada vez mais. Claro que Lúcia nem fazia ideia de todo esse processo químico ocorrendo freneticamente em seu corpo e optou por jogar a culpa do problema, após dias de divagação, no "estúpido coração". Pobre órgão esse, tantas vezes injustamente acusado por atos perpetrados pelo cérebro, a mesma massa cinzenta que insistimos em idolatrar como um símbolo de racionalidade.
O tempo passou, correu, voou e a pobre moça viu seu quadro se agravar ainda mais. Começou a sonhar com o rapaz, ver a face dele nos rostos de outros homens, sentir a presença e o toque dele - ainda que esse último não tivesse tido a oportunidade de experimentar - e, em dado momento, percebeu que estava até falando do dito cujo para seu cachorro. Foi nessa hora que ela entendeu a necessidade urgente, alarmante, inevitável de tomar uma atitude em relação àquele fogo queimando em seu peito. "Da próxima vez que o vir, puxarei assunto. Quero passar essa história a limpo", afirmou veementemente. Ao contrário de muitas promessas que fazemos durante nossa longa breve vida, essa foi de fato levada a cabo, ainda que não da forma planejada.
No dia seguinte, mais precisamente um sábado, aguardou ansiosamente pela chegada do homem. "Primeiro perguntarei o nome dele, depois o chamarei para comer alguma coisa assim que meu expediente terminar". "Não, não posso fazer isso! Onde estou com a cabeça? Ele é maluco, fala palavrões. Não está certo." "Mas e se ele corresponder? E se estiver pensando em mim, nas mesmas coisas que eu? Pode ser que sinta minha falta, pode, sim." "Cala a boca, Lúcia! Que coisa mais sem cabimento. Você nunca ficou assim por alguém, não é hoje que vai começar." "Mas eu não perco nada em tentar, posso até conseguir algo além de um cumprimento. "Vai conseguir no máximo uma bela risada de deboche, isso sim! Quando que um homem daqueles vai olhar pra uma mera secretária feia igual a você?" "E se ele olhar? E se ele quiser me conhecer melhor? "Te conhecer melhor? Você acha mesmo que tem tanta coisa assim pra oferecer?" "Acho que vale a pena dar uma chance a mim mes...
- Lúcia, Lúcia? Quê que você tem, mulher? Ficou surda ou está se fazendo de idiota, hem?
O senhor Rubens estava parado à sua frente, com o rosto enrugado e uma expressão de buldogue ameaçador.
- Responde, minha filha! O gato comeu sua língua por algum acaso?
- Não, não. Perdão, senhor, é que ontem na minha rua aconteceu um...
- Eu lá quero saber o que acontece ou deixa de acontecer na sua vida? Toma! Quero tudo isso digitado pra ontem!
Ele colocou - melhor dizendo, jogou - uma pilha de papéis no balcão da recepção e deixou o escritório com sua postura arrogante corriqueira.
- Ai, só essa que me faltava - resmungou. Esse velho chato vir me dar ainda mais trabalho. Revirou a pilha e percebeu que as páginas eram infinitas. Vou ficar aqui até amanhã fazendo isso.
Ela deitou a cabeça sobre o teclado, desolada. Droga de emprego, droga de vida, droga de Rubens, droga de...
- Olá! O senhor Rubens está?
Aquela voz, o perfume... Não, não podia ser. Era, era, era... quem era mesmo? Qual era o nome dele, meu Deus? Lúcia ergueu a cabeça. Tentou se ajustar na cadeira, mas levou um baita tombo.
- Calma, Lúcia! Vem, eu te ajudo.
O homem pegou nos braços dela e ajudou-a a levantar. Os olhos, os olhos...
- Eu consigo sozinha! - gritou, arrependendo-se logo em seguida.
- Nossa, pra que tanta grosseria? Só quis ajudar!
A loucura lhe tomou de vez.
- Ajudar o cassete! Você quer é acabar com a minha vida, isso sim! Sabia que faz quatro semanas que não tiro você da cabeça? Que sonho contigo todas as noites? Que te vejo andando na rua quando você nem está lá? Que fico falando de você para meu cachorro? Mas você fica aí com essa prepotência toda e eu sou uma estúpida, uma idiota por sentir essas coisas. Claro que você nunca vai olhar para mim! Onde é que eu estou com a cabeça? Nem o seu nome eu sei, nem isso! O senhor Rubens saiu, foi embora, morreu! Agora vá embora também antes que eu lhe meta um tapa no meio da cara pra largar de ser imbecil.
O homem estava estático. Lúcia tombou na cadeira e se pôs a chorar descontroladamente. Ele não sabia o que fazer, então apenas se aproximou e lhe deu um abraço. Nesse momento, ela praticamente morreu e ressuscitou. Primeiro porque jamais havia recebido um abraço tão sincero, segundo porque não estava preparada para aquilo e terceiro... Ah, de que importa? Estava bem e isso era o bastante.
- Mas que palhaçada é essa aqui?
- Rubens, eu posso explicar. Ela caiu da cadeira e eu fui ao seu socorro. Ela poderia ter se machucado ou coisa do tipo.
- É uma inútil essa mulher! Tá chorando ainda por cima? Com tanta coisa pra fazer e ainda fica com melindres?
Uma explosão de raiva, angústia, ódio, tristeza, desespero, sentimento de inferioridade e um nó na garganta sufocante tomaram conta dela e sua primeira reação foi se pôr de pé e sair correndo desvairadamente para a rua. Começava a chover. Seu cabelo se desfez, a chuva piorou, sua maquiagem borrou e seus olhos, vermelhos, derramavam cascatas de lágrimas. Ela não conseguia sequer respirar. Foi então que duas mãos lhe agarraram, puxando-na para debaixo de um toldo.
- Você ficou maluca? Por que disse tudo aquilo?
- Porque é a verdade! Essa merda de emprego, merda de vida, - ela falava soluçando de tanto chorar - merda de chefe... Eu mesma sou uma merda!
- Para com isso, mulher! Parece que tem problema mental.
- Meu maior problema é você! A vida já estava uma grande bosta e aí você resolveu aparecer nela, com esse charme todo. Eu estou falando palavrões, coisa que nunca fiz, e nem o seu nome eu sei!
- É João.
Ela se calou. Se afundou nos olhos dele, observou a sua volta e disparou em direção à sua casa. Nem quis olhar para trás. "Por que comigo?". Chegou ao seu prédio, subiu as escadas, entrou em seu apartamento e desatou a quebrar tudo na casa. Pratos, copos, televisão, estante... Tudo voou para o chão e paredes em questão de segundos. Foi então que se deu conta que Pardo estava tremendo de medo e a olhava firmemente, seus olhos mais esbugalhados que de costume. Ela tentou se aproximar, o cão rosnou. Sentindo suas pernas fraquejarem, se deixou cair na cama e chorar até seu corpo tremer e lhe faltar o ar. Agora até seu cachorro a rejeitava. "Inferno de vida maldita!". Pardo subiu na cama, aparentemente compadecido do sofrimento de sua dona, e deitou na barriga dela. Lúcia não resistiu muito tempo e o sono a pegou desprevenida. Naquela noite com nada sonhou. Acordou ao amanhecer, com o cão babando em sua cara. Percebeu que deveria ter perdido a hora de ir para o trabalho. Olhou seu celular; sessenta e duas ligações perdidas do escritório. Esfregou seus olhos, se levantou com cuidado para que o bicho não acordasse, tirou a roupa molhada do dia anterior e aproveitou o frio para vestir uma blusa e esconder seu cabelo despenteado e a cara amassada.
Quando pôs o primeiro pé na rua sentiu certo alívio. Parecia que seus problemas haviam ficado no ontem. Se recordava de pouca coisa, mas algo muito importante havia mudado. Ela sorriu, agradecendo a Deus por ter tido aquele ataque de insanidade e jogado tudo pro alto. Provavelmente seria demitida, porém simplesmente não conseguia se importar. Ia fazer o que não fazia há anos: ir a um restaurante. Achou um que servia comida italiana e entrou, ignorando absolutamente suas roupas horríveis e sua face manchada pelo rímel, blush, sombra e todas essas coisas que mulheres insistem em colocar no rosto para disfarçar a beleza natural. Sentou-se à mesa e esperou pelo atendimento. O dia estava nublado, mas o sol parecia lhe sorrir por detrás das nuvens. "Que se dane tudo! Hoje nada me abala!".
Mal sabia ela que estava redondamente enganada. Um homem adentrou o recinto de mãos dadas com uma mulher muito bonita. Lúcia sentiu o perfume e na hora lhe veio à cabeça a imagem de João. Viu os dois caminharem até o balcão e pedirem algo para beber. A mulher ria, mas não parecia feliz. O homem não mostrava a face e a conexão entre eles ecoava ruídos desconcertantes, somente audíveis àqueles que um dia já se apaixonaram. Quando ele se virou de lado para beijá-la a boca, a suspeita de Lúcia foi confirmada: era João, o mesmo João que lhe atormentava o pensamento há mais de um mês. Ela simplesmente se levantou e foi embora, seus olhos mareados. O sol surgiu, quase se opondo à infelicidade que ela sentia naquele momento. Pensou em fugir de tudo, mas logo lembrou que era pobre e não conseguiria se sustentar por muito tempo. Tomou outra decisão, contrária à anterior, típica das pessoas que não se atrevem a arriscar.
Chegou ao seu prédio, alçou penosamente seu andar e foi tomar um banho. Ao sair, discou o número do seu trabalho e avisou a Rubens que logo estaria lá, mesmo que tudo aquilo estivesse acontecendo em pleno domingo. Ele gritou ao telefone e ela apenas escutou, pedindo perdão enquanto se arrumava. Nesse dia não quis se maquiar. Pegou sua bolsa, deixou comida para Pardo e lhe acariciou a barriga. O cachorro abriu os olhos, mas logo se entregou ao cansaço e dormiu. Ela sorriu como se chorasse e se foi de seu apartamento, decidida a esquecer de vez aquele homem que tanto a fizera sofrer.
O sol lançou-lhe seus raios, o calor ardeu em sua nuca. Ela abriu a porta do escritório e subiu as escadas. Rubens a esperava e quando a viu não lhe disse palavra. Apenas apontou para a pilha de papéis que ficara ali desde o outro dia. Ela sentou-se atrás de seu computador e pensou nas mil coisas que poderia estar fazendo numa manhã ensolarada de domingo. Olhou para o relógio que já se mostrava apressado; oito ou nove minutos para as onze. Dessa vez, no entanto, ele competia consigo mesmo. Ninguém para entrar correndo na sala, nenhum perfume ou voz a tomarem conta do ambiente. Só folhas e um teclado velho. Lembrou de seus pais, olhou o calendário e então recordou o quão especial era aquela data: há exatos dez anos eles a haviam abandonado. Limpou rápido uma lágrima solitária que escorreu pelo seu rosto.
Quatro minutos haviam se passado e Pardo invadiu seu pensamento. Essa noite, quando voltasse para o seu lar, ele certamente faria uma festa e lhe lamberia a cara. Ela, por sua vez, arrumaria a casa e no dia seguinte faria mais um empréstimo para comprar tudo que em seu ataque de fúria havia quebrado. Vale lembrar que Lúcia não tinha ambições. Vivia muito bem, obrigada, em seu minúsculo apartamento. Não desejava mais dinheiro, menos ainda amor. Aliás, ter este passava longe de seus planos. Preferia não ser amada e esquecer que um dia amara. Lembrou da cena do casal se beijando e por breves segundos sentiu vontade de expelir sua alma pelos olhos, mas conteve suas lágrimas.
Bem, o que Lúcia não imaginava era que a mulher junto a João se chamava Maria. E ela realmente não esta estava feliz ao lado dele, pois em seu coração só havia Pedro. Mas Pedro não a amava, como já sabemos. Pedro era perdidamente apaixonado por Fernando, embora este só tivesse olhos para Lúcia. Mas não a Lúcia que conhecemos, e sim uma outra que não o queria. A nossa Lúcia, bem, ninguém jamais amara. Exceto, é claro, Pardo, seu cachorro tão querido. E nesse caso o sentimento era recíproco ou, pelo menos, parecia ser. Difícil discutir os sentimentos de um animal, pois o ser em questão não pode dizê-los. Ainda assim, ela acreditava ser correspondida pelo mostrengo de quatro patas.
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Autobiografia temporária de um guerreiro
"Bellissimo, è bellissimo. Spero che mi sentirai, ti voglio bene e tu lo sai. È un sentimento che ho nascolto ormai. È bellissimo, bellissimo, bellissimo"
Alessandra Amoroso - Bellissimo
Um pouco de cada coisa. Um pouco de tudo que vivemos, essa mistura de uma infinidade de universos que penetram nosso próprio interior e nos tornam quem somos. Algo que acontece com todos, dia após dia, segundo após segundo e transforma quem somos pela perspectiva daquilo que fomos. Isso compõe nosso efêmero presente, nosso "ser" e, acima de tudo, transforma a maneira como enxergamos a realidade. No meu caso, infinitos universos conectaram-se ao meu próprio e engrandeceram-no, expandiram-no até limites que jamais imaginei serem tangíveis. E num esforço absolutamente emotivo, desejo, do fundo da minha alma, agradecer a todos esses universos que tanto me ajudaram a construir quem sou hoje, o homem que me tornei. Sim, estou falando de vocês, de todos os seus próprios universos que se colidiram com o meu e o mudaram para todo o sempre.
Antes, uma coisa pequena, poucas estrelas, quase nenhuma galáxia; eu aos meus 13 quase 14 anos. Esse era eu, o garoto adotado que assistia novelas mexicanas do SBT e ficava conversando com sua vó sobre qual seria o fim da Paola Bracho na história toda. Esse que assistiu Alegrifes e Rabujos, A Menina do Vestido Azul, O Diário de Daniela, Maria do Bairo, A Madrasta, Rubi e tantas outras que a memória agora, às 4h da manhã, não me permite lembrar. Esse que ouvia "Glamurosa", "50 Cent" e achava que estava arrasando com seu tênis cinza da Red Nose, mal sabendo cantar as músicas em inglês que tocavam na Jovem Pan - porque a Rádio Mix veio bem depois pra mim. Esse mesmo garoto que se sentia péssimo por não conseguir uma namorada, por ser BV, que se achava gordo e feio demais pra conquistar qualquer pessoa, que apanhava quase todos os dias - religiosamente - dos seus colegas de classe. Aquele menino que ainda se chamava Vinicius da Silva - para o qual cantavam a música da Xica da Silva - por não ter tido sua adoção liberada pelo cartório ainda e sofria muito por se achar diferente demais dos outros. Bem aquele garoto que era chamado de "Bolão", "Dumbo", "Viado", "Cabeça de pinto", "Bixa", "Cabelo ruim" e que chegou a levar uma bola de papel alumínio no olho só pra ter sua córnia riscada e ter que gastar mais de 60 reais numa pomada pra resolver uma quase possível cegueira. Esse que, em suma, era um nada no meio de uma multidão de pessoas aparentemente crescidas.
Aos 14 anos, no entanto, uma novela mudou a vida desse pré-adolescente que chorava por amar meninas lindas demais para ele. Rebelde foi comprada pelo SBT e, desde o primeiro episódio, ele se apaixonou perdidamente pelos personagens e a trama. Ensaiou passos de dança e até rabiscou no papel o esboço de um espanhol deturpado só pra cantar junto com a abertura da novela. Daí em diante, esse menino passou a ser inspirado por aquilo e, um belo dia, decidiu montar um grupo cover da banda originada na novela. Ele e seu companheiro de aventuras no videogame durante tardes de pão com queijo derretido, servido pela mulher que mais me faz falta hoje, decidiram escrever uma carta e mimiografá-la, convidando pessoas que tivessem aquele interesse em comum a se juntarem à nossa fantasia juvenil. Lucas, obrigado por ter me ajudado a distribuir cartas pela vizinhança, tocar campainhas e sair correndo pra depois esperar pacientemente por uma resposta.
Após longas tentativas, apenas uma carta e três pessoas surgiram para debater o assunto. Mirella, Giovanna e um outro garoto que não lembro o nome, hahaha. Depois veio mais gente, como a Priscila, Danilo, Mariana e Bruna. O grupo foi formado e o maior sonho desses jovens era conseguir se apresentar no Programa do Gugu, na tentativa de ter uma chance de conhecer os membros do RBD. Hoje eu lembro e rio disso... bons tempos, havemos de concordar. O funk continuou na vida desse garoto, mas agora ele ouvia um grupo que falava sobre amor, sobre a vida, sobre crescer e se impor, sobre ser quem você realmente é. Mas, como o tempo voa e leva em suas asas muitas coisas, o grupo foi se desfazendo - não sem antes ter ensaiado aos fins de semana durante meses, saído na rua com gravata e roupas da novela e tirado algumas fotos vergonhosas (passado sempre condena, não é mesmo?!). Isso sem mencionar os relacionamentos e a perda do meu BV - finalmente! - com uma das garotas da "banda" - e com um dos garotos também, hahaha (perdão por isso, Giovanna).
O menino agora começava a pensar que não gostava só de meninas, afinal rapazes tinham um corpo atraente, vozes fortes e belos sorrisos. Ainda assim, lhe foi muito difícil admitir esse seu lado e ele chegou a colocar um elástico em seu pulso para puxá-lo e se machucar toda vez que pensasse em garotos. Sabe como é. Berço evangélico, o pastor te dizendo indiretamente que seu destino é o inferno caso você não se converta e a importância de entregar sua vida a Jesus pra ser liberto desses desejos demoníacos. É, eu tinha Lúcifer dentro de mim e dele não conseguia me livrar, mesmo me ajoelhando, jejuando e fazendo campanhas de oração. Muito choro, desespero e frustração até que ele largasse a igreja e fosse viver sua vida como achava que devia. A bruxaria - olha o "Diabo" de novo, hahaha - se apoderou dele e o garoto se tornou Wicca. Wicca meia boca, mas era o nome que poderia ser dado àquilo que ele teoricamente seguia.
Ele então entrou num curso preparatório para os exames das ETECS e, num belo dia - numa bela aula de Geografia com um professor que lhe deixava louco de tesão - Piero e mais uma garota foram falar de como era o processo avaliatório. Mas, no meio de toda a falação, algo capturou sua atenção de uma forma arrebatadora; havia uma escola, perdida no meio do Brás, onde homossexuais não só eram aceitos, como também trocavam beijos e carícias no meio do pátio, quadra, salas de aula e onde mais fosse possível - só não me pergunte se no banheiro também, hahaha. Não possuo essa informação, hahaha. Tiro certeiro: Carlos de Campos, mais conhecida como KK, era sua meta de ensino médio. Federal e Liceu que fossem pras picas; o garoto queria era deixar aflorar seu lado gay.
Bem, como de praxe, ele não deixou de ser zoado pelo seu então cabelo lambido, artificialmente alisado, e seu boné inseparável que quase lhe cobria por completo os olhos. Seu medo de pessoas ainda era gigantesco e tudo isso só fez aumentar tal sensação. Ainda assim, ironias da vida o levaram a fazer amigos naquele lugar, amigos que caminhariam com ele por três anos em meio a aulas de Matemática em que mal se ouvia o professor e uma professora de Educação Física mais velha que minha mãe e avó juntas. Sem contar o carrasco professor de História e a louca que insistia em me chamar de Willian - porque Willian e Vinícius são os maiores exemplos de homônimos na Língua Portuguesa, claro. De qualquer forma, Andreza Godoy, Luana Iversen, Sidney Fernandes e Bruna Alves se tornaram um grupo inquebrável. Desentendimentos vieram, logicamente, mas a conexão entre os cinco permaneceu do início ao fim, oscilando entre forte, mediana e fraca. Mas o garoto perdido, o nada, de repente era o centro do quinteto, aquele que conectava todos e nunca - ou quase nunca - brigava com alguém. Tudo seguiu muito bem em meio a corredores, danças de Para Para e partidas de UNO durante as aulas de Física - ah, e trabalhos de História infindáveis no Centro Cultural, hahaha. Os três melhores anos da minha vida!
No entanto, em 2008 esse garoto teve uma crise de taquicardia e foi parar no hospital, pensando que ia morrer e já discando mil números pra se despedir de todas as pessoas até agora mencionadas. Seu coração voltou ao normal em algumas horas, mas, em compensação ele e a mente inverteram papéis; esta começou a trabalhar a mil e acabou forçando o outro a ocasionalmente acompanhá-la. Resumo da ópera: foram noites incontáveis de hospital, desesperos noturnos e questões existenciais bombardeando seu pensamento o tempo todo. Ele havia quase morrido - pelo menos assim pensava - e isso pusera em cheque a vida que até então vivera. Quem era ele? De onde havia vindo? Pra onde iria? Existia um Deus? O que era realidade? Qual era sua real identidade? Existia vida após a morte? E o inferno do qual tanto haviam lhe falado existia mesmo? Se sim, quão horrendo seria ele? Será que Jesus o aceitaria mesmo sendo gay? Seria melhor largar aquela vida, voltar pra igreja e esquecer toda aquela caminhada? O quê fazer diante das situações em que era publicamente exposto? Como dizer "não"? Como falar com as pessoas? O que elas pensavam dele? Será que ele era ridículo? Quão burro ele era? Quão incapaz de ser como os outros? De onde o Universo surgira? O que fazíamos aqui, qual era o propósito da vida em si? Ainda assim, ele conseguia por tudo isso de lado momentaneamente pra se masturbar três ou quatro vezes - até 11, numa noite específica - assistindo pornô gay.
Bem, desnecessário dizer que pra um adolescente de 16 anos tantos questionamentos e escassas respostas geraram alguns transtornos psicológicos. O primeiro foi a Síndrome do Pânico, a qual ele preferiu não tratar. Tomou 30 dias de calmante e decidiu lutar por si próprio, sem um psicólogo pra ajudá-lo a superar o trauma. Mas nada mais seria o mesmo dali em diante. Uma nova pessoa estava nascendo e isso remexia o interior desse rapaz como nada houvera feito até o momento. Seu desespero só crescia e ele passou a ouvir Epica, Nightwish e muito Evanescence pra aliviar - ou intensificar - a confusão em que seu espírito se encontrava. Depressivo, pelos menos aparentemente, e emo (embora não se considerasse como tal). Os meses se passaram, as crises diminuíram, porém os reflexos em seu psicológico continuaram com ele. Quão difícil era estar naquele caos interno contínuo e torturante, sem saber pra onde ir, a quem recorrer, qual conselhor seguir, quem se tornar. Aliás, era ele alguém mesmo? De carne e osso, como os outros? Não sei dizer...
Fato é que ele passou a viver numa montanha-russa emocional. Uns dias bem, outros mal. Muita disposição e, subitamente, vontade de não fazer coisa alguma. Choro e riso ao mesmo tempo. Frieza e carência jogando xadrez uma com a outra. Mais coisas aconteceram - vamos tentar não fazer desse texto um livro, por favor, hahaha - e ele, no fim de 2009 conheceu um garoto que mudou sua vida. Até então, a sexualidade não era um fator resolvido para Vinicius, mas seu amor por ele foi tão grande que nem os 2913 quilômetros que os separavam e amores antigos mal resolvidos foram capazes de detê-los. Depois de 4 meses, conheceram-se pessoalmente e foi simplesmente mágico. Depois de 15 dias, se despediram e a saudade atacou como um machado numa árvore capenga. Mas 4 meses depois eles se veriam novamente e, dessa vez, ficariam, teoricamente, para sempre juntos. Tanto é verdade, que acabaram juntando as escovas de dente e passaram a dividir uma improvisação de cama de casal na casa de Vinicius. Todavia, por razões que nem Freud explica - aliás, deixo aqui minha expressa preferência pelos behavioristas em oposição aos freudianos - o casal eternidade acabou se separando. E isso aconteceu gradualmente, mas o "divórcio" só foi ser consumado em meados de 2011. E por que isso?
Vejamos, à epoca Vinicius estudava Letras na USP, trabalhava como professor de inglês e quis procurar uma psicóloga para ajudá-lo com algumas questões básicas (organização dos dias e coisas do tipo). Irônica decisão depois da recusa dessa mesma ajuda em 2008. Freudiana que era - meu "trauma" agora fica claro, creio -, a mulher passou a querer investigar meu passado e revirar tudo que fosse possível dentro de mim. Deu-me mais questões e, lembremos aqui a questão dos questionamentos, as respostas tornaram-se ainda mais escassas.
É de senso comum que jogar Merthiolate na ferida faz com ela arda mais ainda, mas pelo menos evita-se o proliferamente de bactérias e uma possível infecção. Comigo, no entanto, a quantidade - ou qualidade - de Merthiolate não foi o bastante; a ferida começou a doer mais, mais, mais e mais até se tornar quase insuportável e o que outrora fora um simples corte deu origem a uma hemorragia infindável. Depois de ter terminado o namoro, pensado em fugir pra outra cidade, feito planos suicidas, ver sua auto-estima quase eliminada, mal tomar banho ou sair de casa, chorado frequentemente, quase pedido demissão do emprego e ter se convencido de que era uma merda em absolutamente todos os aspectos de sua vida, Vinicius decidiu implorar à sua terapeuta que o encaminhasse a um psiquiatra. Ela não curtiu muito a idéia, mas acatou o pedido. Fui ao "médico dos loucos" e na mosca: estava com Depressão Moderada. Ah, esqueci de falar que faltei mais de dois meses na faculdade e, portanto, não atingi metas de presença ou mesmo fiz as provas de três matérias. Da minha grade de quatro estudos, apenas em um consegui passar (com uma nota ridícula de 6,6).
Os remédios prescritos pelo especialista começaram a surtir efeito e eu fui, pouco a pouco, me levantando. Por outro lado, não corri atrás das coisas que havia perdido e volta e meia retomava os pensamentos acima citados. Ainda assim, havia certamente melhorado um pouco à base de Cloridrato de Sertralina e Rivotril. Mais tempo se passou, Vinicius ingressou num curso de teatro e as coisas caminharam relativamente bem. Os problemas, no entanto, persistiram, ainda que reduzidos, e sua tristeza era constante e se alternava com estados de intensa alegria, auto-confiança e gastos abusivos. Resultado: novo diagnóstico. Vinicius não era Depressivo, era Bipolar. Os medicamentos mudaram e ele acrescentou Lamutrigina à sua dose diária de reguladores de humor.
Tudo ficou um pouco melhor, então. Mas nada dura pra sempre, bem sabemos disso. Os sintomas voltaram, o psiquiatra viajou e não deu mais notícia de sua existência e o garoto bipolar teve outra crise. Apesar de ter retomado os estudos na faculdade, voltou a faltar às aulas e planejou novamente seu suicídio. A tristeza se fez ainda mais presente, a melancolia virou sua melhor amiga e Lost in Paradise, do Evanescence, seu hino matinal, diurno e noturno. Só que dessa vez, o menino tomou a atitude de fumar pra tentar aliviar a pressão de tudo aquilo. Um dia, faltou a uma reunião de seu trabalho por ter dormido das 3 da manhã às 5 da tarde. Teve vontade de quebrar todos os móveis da casa, alucinou com imagens de sangue, corpos sendo dilacerados na sua frente, vozes falando em sua cabeça e aproveitou-se de suas longas unhas pra arranhar suas pernas o máximo que conseguisse (queria fazer o mesmo com os braços, mas ficaria visível demais e choveriam perguntas sobre o que havia acontecido). Doeu a auto-mutilação, mas ele gostou da sensação. Cinco minutos depois, começou a rir sozinho e decidiu que queria ir de táxi para o trabalho. Não queria ver ninguém e metrô/ônibus - em sua mente - eram coisa de pobre. Ele tinha mil reais em sua conta, podia muito bem pagar um motorista só pra levá-lo até seu trabalho. Na maior felicidade do mundo, foi ouvindo músicas super alto-astral e chegou na escola com a desculpa de uma dor de estômago que lhe acometera por volta das 13h. Ao chegar em casa naquele dia, chorou muito por ter sentido medo de si mesmo, medo do que estava se tornando.
Havia quase perdido as esperanças e seu hino passara a ser Pulsos, da Pitty. Ele ainda guardava seus pulsos pra saída de emergência. Mas a vida, cheia de reviravoltas, trouxe até ele uma recepcionista de seu próprio local de trabalho que havia sido secretária de um psiquiatra conhecido. A recomendação caiu bem e na sexta-feira, 5/08, ele foi à sua consulta às 8h da manhã na Vila Mariana. Dr. Luiz Giometti, se a alguém interessar, hahaha. Batata: Transtorno Bipolar Tipo 2. Fases de euforia com tendência depressiva. Medicação dobrada (Lamutrigina quadruplicada) e as coisas finalmente se ajeitaram. Desde esse dia - bem recente, não?! - o mundo ganhou outro aspecto. Vinicius passou a ser um ser real, consciente de suas capacidades. Fez planos: vai seguir no teatro, fazer Dramaturgia, estudar brevemente Psicologia, cursar Direção e se tornar Dramaturgo/Diretor. Pôs sua rotina e sono em dia (exceto por hoje, pois já são 5:55 da manhã e ele ainda está acordado). Agora sabe que é um bom professor e até capaz de chorar de alegria, dizer o que realmente pensa, impor sua opinião, passar 50 minutos no telefone com alguém que ele ama muito e realizar simples tarefas que antes lhe eram um peso enorme - talvez mais pesadas que o peso de Atlas.
E o que quis dizer com tudo isso? Bem, depois de escrever esse texto e ter fumado 7 cigarros (vou parar um dia, prometo!), Vinicius vai se deitar e acordar para um dia a mais, mais um dia pra mudar tudo aquilo que o fez se sentir mal um dia. Vinicius vai acordar para mais um dia continuar a lutar, continuar a se manter firme e correr para o seu futuro como uma águia em busca de sua presa. Vai guerrear, assumir a posição que sempre lhe coube, mas foi tão difícil de assumir: a posição de guerreiro. E hoje, depois de acordar, continuarei a escrever em minhas ações, pensamentos e emoções essa autobiografia. A autobiografia temporária de um guerreiro que aprendeu a não desistir, a não perder a esperança e que, finalmente, pode sorrir do fundo de seu coração, chorar nos braços de sua mãe e agradecê-la por tudo que fez por mim.
Dedico a todos vocês, meus companheiros de luta, essa breve história do meu "eu" que praticamente acabou de nascer. Obrigado por estarem sempre comigo, mesmo que apenas no meu coração. Sem vocês eu não estaria aqui, sem vocês eu não teria conseguido. Sem vocês eu morreria na guerra, sem ao menos tentar sobreviver a ela. Meu mais profundo e sincero obrigado e agora vamo que vamo, porque todos somos guerreiros e temos muitas batalhas a vencer!
Ah, e eu achei uma psicóloga behaviorista EXCELENTE! Hahahaha, adeus Freudianos, pelo menos por enquanto ;)
Trilha sonora do texto:
Alessandra Amoroso - Ama Chi Ti Vuole Bene/Bellissimo
Snow Patrol - Chasing Cars/Run/Signal Fire
P!nk - Glitter In The Air/Who Knew
Adele - Hometown Glory
Beyoncé - I Was Here
Avril Lavigne - Innocence/My World
Jessie J - Nobody's Perfect/Who You Are
Birdy - People Help The People
Enigma - Prism Of Life/Return To InnocenceFlorence + The Machine - Shake It Out
Pitty - Temporal
Capital Inicial - Primeiros Erros/Tudo Que Vai
Bem, desnecessário dizer que pra um adolescente de 16 anos tantos questionamentos e escassas respostas geraram alguns transtornos psicológicos. O primeiro foi a Síndrome do Pânico, a qual ele preferiu não tratar. Tomou 30 dias de calmante e decidiu lutar por si próprio, sem um psicólogo pra ajudá-lo a superar o trauma. Mas nada mais seria o mesmo dali em diante. Uma nova pessoa estava nascendo e isso remexia o interior desse rapaz como nada houvera feito até o momento. Seu desespero só crescia e ele passou a ouvir Epica, Nightwish e muito Evanescence pra aliviar - ou intensificar - a confusão em que seu espírito se encontrava. Depressivo, pelos menos aparentemente, e emo (embora não se considerasse como tal). Os meses se passaram, as crises diminuíram, porém os reflexos em seu psicológico continuaram com ele. Quão difícil era estar naquele caos interno contínuo e torturante, sem saber pra onde ir, a quem recorrer, qual conselhor seguir, quem se tornar. Aliás, era ele alguém mesmo? De carne e osso, como os outros? Não sei dizer...
Fato é que ele passou a viver numa montanha-russa emocional. Uns dias bem, outros mal. Muita disposição e, subitamente, vontade de não fazer coisa alguma. Choro e riso ao mesmo tempo. Frieza e carência jogando xadrez uma com a outra. Mais coisas aconteceram - vamos tentar não fazer desse texto um livro, por favor, hahaha - e ele, no fim de 2009 conheceu um garoto que mudou sua vida. Até então, a sexualidade não era um fator resolvido para Vinicius, mas seu amor por ele foi tão grande que nem os 2913 quilômetros que os separavam e amores antigos mal resolvidos foram capazes de detê-los. Depois de 4 meses, conheceram-se pessoalmente e foi simplesmente mágico. Depois de 15 dias, se despediram e a saudade atacou como um machado numa árvore capenga. Mas 4 meses depois eles se veriam novamente e, dessa vez, ficariam, teoricamente, para sempre juntos. Tanto é verdade, que acabaram juntando as escovas de dente e passaram a dividir uma improvisação de cama de casal na casa de Vinicius. Todavia, por razões que nem Freud explica - aliás, deixo aqui minha expressa preferência pelos behavioristas em oposição aos freudianos - o casal eternidade acabou se separando. E isso aconteceu gradualmente, mas o "divórcio" só foi ser consumado em meados de 2011. E por que isso?
Vejamos, à epoca Vinicius estudava Letras na USP, trabalhava como professor de inglês e quis procurar uma psicóloga para ajudá-lo com algumas questões básicas (organização dos dias e coisas do tipo). Irônica decisão depois da recusa dessa mesma ajuda em 2008. Freudiana que era - meu "trauma" agora fica claro, creio -, a mulher passou a querer investigar meu passado e revirar tudo que fosse possível dentro de mim. Deu-me mais questões e, lembremos aqui a questão dos questionamentos, as respostas tornaram-se ainda mais escassas.
É de senso comum que jogar Merthiolate na ferida faz com ela arda mais ainda, mas pelo menos evita-se o proliferamente de bactérias e uma possível infecção. Comigo, no entanto, a quantidade - ou qualidade - de Merthiolate não foi o bastante; a ferida começou a doer mais, mais, mais e mais até se tornar quase insuportável e o que outrora fora um simples corte deu origem a uma hemorragia infindável. Depois de ter terminado o namoro, pensado em fugir pra outra cidade, feito planos suicidas, ver sua auto-estima quase eliminada, mal tomar banho ou sair de casa, chorado frequentemente, quase pedido demissão do emprego e ter se convencido de que era uma merda em absolutamente todos os aspectos de sua vida, Vinicius decidiu implorar à sua terapeuta que o encaminhasse a um psiquiatra. Ela não curtiu muito a idéia, mas acatou o pedido. Fui ao "médico dos loucos" e na mosca: estava com Depressão Moderada. Ah, esqueci de falar que faltei mais de dois meses na faculdade e, portanto, não atingi metas de presença ou mesmo fiz as provas de três matérias. Da minha grade de quatro estudos, apenas em um consegui passar (com uma nota ridícula de 6,6).
Os remédios prescritos pelo especialista começaram a surtir efeito e eu fui, pouco a pouco, me levantando. Por outro lado, não corri atrás das coisas que havia perdido e volta e meia retomava os pensamentos acima citados. Ainda assim, havia certamente melhorado um pouco à base de Cloridrato de Sertralina e Rivotril. Mais tempo se passou, Vinicius ingressou num curso de teatro e as coisas caminharam relativamente bem. Os problemas, no entanto, persistiram, ainda que reduzidos, e sua tristeza era constante e se alternava com estados de intensa alegria, auto-confiança e gastos abusivos. Resultado: novo diagnóstico. Vinicius não era Depressivo, era Bipolar. Os medicamentos mudaram e ele acrescentou Lamutrigina à sua dose diária de reguladores de humor.
Tudo ficou um pouco melhor, então. Mas nada dura pra sempre, bem sabemos disso. Os sintomas voltaram, o psiquiatra viajou e não deu mais notícia de sua existência e o garoto bipolar teve outra crise. Apesar de ter retomado os estudos na faculdade, voltou a faltar às aulas e planejou novamente seu suicídio. A tristeza se fez ainda mais presente, a melancolia virou sua melhor amiga e Lost in Paradise, do Evanescence, seu hino matinal, diurno e noturno. Só que dessa vez, o menino tomou a atitude de fumar pra tentar aliviar a pressão de tudo aquilo. Um dia, faltou a uma reunião de seu trabalho por ter dormido das 3 da manhã às 5 da tarde. Teve vontade de quebrar todos os móveis da casa, alucinou com imagens de sangue, corpos sendo dilacerados na sua frente, vozes falando em sua cabeça e aproveitou-se de suas longas unhas pra arranhar suas pernas o máximo que conseguisse (queria fazer o mesmo com os braços, mas ficaria visível demais e choveriam perguntas sobre o que havia acontecido). Doeu a auto-mutilação, mas ele gostou da sensação. Cinco minutos depois, começou a rir sozinho e decidiu que queria ir de táxi para o trabalho. Não queria ver ninguém e metrô/ônibus - em sua mente - eram coisa de pobre. Ele tinha mil reais em sua conta, podia muito bem pagar um motorista só pra levá-lo até seu trabalho. Na maior felicidade do mundo, foi ouvindo músicas super alto-astral e chegou na escola com a desculpa de uma dor de estômago que lhe acometera por volta das 13h. Ao chegar em casa naquele dia, chorou muito por ter sentido medo de si mesmo, medo do que estava se tornando.
Havia quase perdido as esperanças e seu hino passara a ser Pulsos, da Pitty. Ele ainda guardava seus pulsos pra saída de emergência. Mas a vida, cheia de reviravoltas, trouxe até ele uma recepcionista de seu próprio local de trabalho que havia sido secretária de um psiquiatra conhecido. A recomendação caiu bem e na sexta-feira, 5/08, ele foi à sua consulta às 8h da manhã na Vila Mariana. Dr. Luiz Giometti, se a alguém interessar, hahaha. Batata: Transtorno Bipolar Tipo 2. Fases de euforia com tendência depressiva. Medicação dobrada (Lamutrigina quadruplicada) e as coisas finalmente se ajeitaram. Desde esse dia - bem recente, não?! - o mundo ganhou outro aspecto. Vinicius passou a ser um ser real, consciente de suas capacidades. Fez planos: vai seguir no teatro, fazer Dramaturgia, estudar brevemente Psicologia, cursar Direção e se tornar Dramaturgo/Diretor. Pôs sua rotina e sono em dia (exceto por hoje, pois já são 5:55 da manhã e ele ainda está acordado). Agora sabe que é um bom professor e até capaz de chorar de alegria, dizer o que realmente pensa, impor sua opinião, passar 50 minutos no telefone com alguém que ele ama muito e realizar simples tarefas que antes lhe eram um peso enorme - talvez mais pesadas que o peso de Atlas.
E o que quis dizer com tudo isso? Bem, depois de escrever esse texto e ter fumado 7 cigarros (vou parar um dia, prometo!), Vinicius vai se deitar e acordar para um dia a mais, mais um dia pra mudar tudo aquilo que o fez se sentir mal um dia. Vinicius vai acordar para mais um dia continuar a lutar, continuar a se manter firme e correr para o seu futuro como uma águia em busca de sua presa. Vai guerrear, assumir a posição que sempre lhe coube, mas foi tão difícil de assumir: a posição de guerreiro. E hoje, depois de acordar, continuarei a escrever em minhas ações, pensamentos e emoções essa autobiografia. A autobiografia temporária de um guerreiro que aprendeu a não desistir, a não perder a esperança e que, finalmente, pode sorrir do fundo de seu coração, chorar nos braços de sua mãe e agradecê-la por tudo que fez por mim.
Dedico a todos vocês, meus companheiros de luta, essa breve história do meu "eu" que praticamente acabou de nascer. Obrigado por estarem sempre comigo, mesmo que apenas no meu coração. Sem vocês eu não estaria aqui, sem vocês eu não teria conseguido. Sem vocês eu morreria na guerra, sem ao menos tentar sobreviver a ela. Meu mais profundo e sincero obrigado e agora vamo que vamo, porque todos somos guerreiros e temos muitas batalhas a vencer!
Ah, e eu achei uma psicóloga behaviorista EXCELENTE! Hahahaha, adeus Freudianos, pelo menos por enquanto ;)
Trilha sonora do texto:
Alessandra Amoroso - Ama Chi Ti Vuole Bene/Bellissimo
Snow Patrol - Chasing Cars/Run/Signal Fire
P!nk - Glitter In The Air/Who Knew
Adele - Hometown Glory
Beyoncé - I Was Here
Avril Lavigne - Innocence/My World
Jessie J - Nobody's Perfect/Who You Are
Birdy - People Help The People
Enigma - Prism Of Life/Return To InnocenceFlorence + The Machine - Shake It Out
Pitty - Temporal
Capital Inicial - Primeiros Erros/Tudo Que Vai
domingo, 1 de julho de 2012
Meio-termo
Sou um muro, um muro em cima de outro muro. Se a incerteza causo, ela também sou. Um misto de descrença e fé, algo entre o céu e o inferno. O elo perdido que conecta a perversão à santidade. Não me chamem de bom, pois meus pensamentos escondidos, lacrados e enclausurados, desfazem qualquer bondade. A maledicência não me toma por natureza, mas seus traços em minhas ações se passam por sutis. Se disseres ser eu a pureza, respondo-lhe que puros são teus olhos, inocentes demais para ver os chifres por detrás da auréola. Nem branco, nem preto: o cinza me agrada mais. Se dou dois passos adiante, penso em recuar três e estanco por não saber pra onde ir. A luz insiste em invadir minhas trevas, mas estas, por sua vez, tão teimosas quanto a primeira são. Se desfazem por segundos e tomam conta por minutos. Uma década pretendo respirar, nunca um segundo ou um milênio. Quisera eu sorrir de felicidade; a tristeza, porém, me faz mais alegre. Minha lágrima até não sabe se escorre pelo rosto ou retorna ao olho. Meu suor se atemoriza diante do mundo, mas odeia demais meu corpo para nele ficar. Abutres que me ceifem, de mim um estupendo jantar façam! Não garanto, todavia, encher-lhes o estômago. Ficarão mais indecisos se saciados estão ou se por mais anseiam.
Aliás, talvez indecisão seja meu nome. 8 e 80 não me pertencem, antes fico com o meio. Um meio-termo extremista, que não cede nem perde. Não ganha, nem empata. Não morre, nem vive. Apenas é, apenas me faz. Apenas faz o "eu" que sou. Eu que meio é, resistente demais para ser pouco ou muito. O meio que jamais andou, o termo que na metade do caminho parou.
Aliás, talvez indecisão seja meu nome. 8 e 80 não me pertencem, antes fico com o meio. Um meio-termo extremista, que não cede nem perde. Não ganha, nem empata. Não morre, nem vive. Apenas é, apenas me faz. Apenas faz o "eu" que sou. Eu que meio é, resistente demais para ser pouco ou muito. O meio que jamais andou, o termo que na metade do caminho parou.
quarta-feira, 30 de maio de 2012
Evanescer
Sangrou a última gota,
um coração já vazio,
uma melodia já oca,
sem ritmo, sem maestro.
Sem maestro, sem batida.
Não como a chuva a se debulhar,
e sim como uma lágrima escondida,
daquelas que não ousam se mostrar.
Um dia, uma noite, mil e uma noites
ele esperaria, mas hoje não é dia.
Hoje não é uma noite, menos ainda mil e uma.
Segue a estrada, seu coração já de pedra,
escuro, sem luz como a noite a guiá-lo.
Seus fantasmas a persegui-lo,
medos dele tentando arrancar.
Mas já não é mais o mesmo;
sua melodia secou e morreu.
Sangrou, como sangra a vida,
como sangra o que tem vida.
Como gela o frio da morte,
congelou, endureceu, mais que pedra virou.
E hoje não se acha mais seu sol,
seu sol que brilhava sem fim.
A luz se apagou, as nuvens nublaram seu céu,
nublaram seu ser.
Morrem mil, nasce um.
Evanescem todos antes do cair da noite,
todos que luz um dia tiveram.
Sangra a última gota,
cessa a música, apaga-se o fogo,
morre a batida e bate o coração sua última vez.
Dali em diante, só rochas,
pois rochas não sangram.
um coração já vazio,
uma melodia já oca,
sem ritmo, sem maestro.
Sem maestro, sem batida.
Não como a chuva a se debulhar,
e sim como uma lágrima escondida,
daquelas que não ousam se mostrar.
Um dia, uma noite, mil e uma noites
ele esperaria, mas hoje não é dia.
Hoje não é uma noite, menos ainda mil e uma.
Segue a estrada, seu coração já de pedra,
escuro, sem luz como a noite a guiá-lo.
Seus fantasmas a persegui-lo,
medos dele tentando arrancar.
Mas já não é mais o mesmo;
sua melodia secou e morreu.
Sangrou, como sangra a vida,
como sangra o que tem vida.
Como gela o frio da morte,
congelou, endureceu, mais que pedra virou.
E hoje não se acha mais seu sol,
seu sol que brilhava sem fim.
A luz se apagou, as nuvens nublaram seu céu,
nublaram seu ser.
Morrem mil, nasce um.
Evanescem todos antes do cair da noite,
todos que luz um dia tiveram.
Sangra a última gota,
cessa a música, apaga-se o fogo,
morre a batida e bate o coração sua última vez.
Dali em diante, só rochas,
pois rochas não sangram.
domingo, 30 de outubro de 2011
O maior arquiteto
Há um tempo demoli uma casa. Já havia lhe consertado as paredes, ajeitado as janelas, remodelado todo o interior e ainda assim a visão não me agradava. Parecia-me, àquele momento, um tanto espaçosa demais, meio sem identidade, perdida num mar de confusões e cores deslocadas. Faltava-me pouco descontentamento para que finalmente a pussesse abaixo. O sentimento foi-me completado e a atitude tomada quando veio-me à mente a idéia de outra construção.
Essa nova casa seria menor, com espaços um tanto mais estreitos, um jardim à sua frente e pinturas mais vivas. Tencionava eu enchê-la de alegria para que pudesse aos outros também fazer sorrir. Se tão boa me parecia, tanto difícil quanto bela também se tornava. Mas pus-me a erguê-la. Tijolo sobre tijolo, dia após dia. Semanas ensolaradas de esforço e exaustão, com pouca ou nenhuma pausa pra alguma reflexão. Ao cabo de 40 dias eu a havia concluído.
Reluzia, brilhava e se entregava ao sol como se entregam os amantes ao seu desejo pelo outro. Não lhe fiz muita propaganda a princípio, posto querer admirá-la e retocá-la aos poucos sem que tais coisas fossem influenciadas pela opinião alheia. E gostei, confesso. Gostei, na verdade, parece-me palavra pouco justa à intensidade do que senti; amei-a, seria melhor dizer. Amei-a com meu ser, deixei minha alma por ela - mas também para ela - vibrar. E foi ela, então, tudo para mim. Não esperava a retribuição do sentimento, logicamente; casas não amam. Pode até ser que o façam, mas nunca lhes demos bocas para que o falassem.
Alguns dias se foram até que eu finalmente a trouxe a publico. "Que obra divina!", diziam as mulheres. "Muito bem planejada!", homens da área concordavam. "Quero passar meus últimos anos aqui!", por fim os mais avançados em idade afirmavam. E todos a amavam, a todos ela conquistava, assim como a mim também fizera ao vê-la acabada. Engraçado como as paixões chamam-se fugazes apenas após terem-se ido.
Plantei as primeirais flores e vi em minha mente o belíssimo jardim que ali havia de se desenvolver. Maravilhoso e imponente em sua pequenez e simplicidade. No entanto, algo começava a soar-me estranho. Uma voz trazida aparentemente pelo vento dizia-me não ser aquela casa algo tão bom; contrariava, entretanto, meu coração, que a ela se doava e em sua homenagem ainda prestava elogios. Eu ignorava ambos e me atia a prosseguir meu trabalho. Sem muito pensar, sem muito pestanejar.
Aconteceu que um mês após tal episódio a voz do vento já não mais me soprava aos ouvidos, mas ao coração; este, por sua vez, contaminava-se com a blasfêmia proferida contra a edificação e abstinha-se de sentir o mesmo amor que outrora lhe fora tão inevitável. Eu ignorava agora aquilo que havia ignorado antes e atia-me a pensar, sem muito trabalhar, se a escolha de construí-la fora tão acertada quanto me parecera logo de início. Talvez o vento estivesse correto. Talvez as pessoas tivessem sido iludidas pelo novo, talvez eu mesmo houvesse me deixado persuadir por tanta novidade. A casa não era bela, afinal. Sentei-me, pensando quando a destruiria, pois não me parecia boa idéia tentar remendá-la. Soneto não era, certamente, mas assim como se faz poesia eu também a fizera.
Para a obra não chamei ninguém. Fui-me sozinho, descalço e, dessa vez, sem rumo fixo. Chegando-me frente a ela agachei-me e observei. Vieram-me de súbito os motivos pelos quais deveria destruí-la. Seus espaços eram demasiadamente estreitos, aquele jardim não era tão atraente e as cores vivas cegavam os olhos. Tanta alegria me parecia despropositada. Melhor era fazer uma outra, maior, mais larga, com uma pintura mais fria e possivelmente menos convidativa. Quiçá uma que se assemelhasse mais àquela que antes dela viera. O descontentamento foi-me então completado e a atitude, tomada.
No dia seguinte já não havia tijolo sobre tijolo, apenas ruínas, escombros coloridos. O céu estava nublado e eu iniciara a construção do que viria a ser a próxima casa. Não demoraria muito, cria eu, para que eu a vislumbrasse em sua concretude. Chamaria uma vez mais muita gente para contemplá-la e amá-la juntamente a mim.
O tempo se passou, eu a terminei e depois também a demoli. Demoli muitas outras que com muito ou nem tanto esforço construí. Meus amores por elas variaram em sua duração, mas sempre tiveram a mesma intensidade. Arrebatando-me por segundos ou meses, faziam-me vivo por aqueles instantes. Hoje tenho uma cidade inteira feita de entulho. Às vezes a acho feia e dela quero fugir, mas há momentos em que a amo como se fosse tudo que eu tivesse. Talvez a vida seja assim mesmo, talvez precisemos quebrar e construir, sem nunca parar, até achar uma casa que não derrubaremos. Uma casa que nos verá cair, que estará lá no dia de nossa demolição e resitirá, mais que nós, à impetuosa voz do vento. Uma casa que permanecerá até que alguém a ache desnecessária e, no seu lugar, resolva derrubá-la.
Essa nova casa seria menor, com espaços um tanto mais estreitos, um jardim à sua frente e pinturas mais vivas. Tencionava eu enchê-la de alegria para que pudesse aos outros também fazer sorrir. Se tão boa me parecia, tanto difícil quanto bela também se tornava. Mas pus-me a erguê-la. Tijolo sobre tijolo, dia após dia. Semanas ensolaradas de esforço e exaustão, com pouca ou nenhuma pausa pra alguma reflexão. Ao cabo de 40 dias eu a havia concluído.
Reluzia, brilhava e se entregava ao sol como se entregam os amantes ao seu desejo pelo outro. Não lhe fiz muita propaganda a princípio, posto querer admirá-la e retocá-la aos poucos sem que tais coisas fossem influenciadas pela opinião alheia. E gostei, confesso. Gostei, na verdade, parece-me palavra pouco justa à intensidade do que senti; amei-a, seria melhor dizer. Amei-a com meu ser, deixei minha alma por ela - mas também para ela - vibrar. E foi ela, então, tudo para mim. Não esperava a retribuição do sentimento, logicamente; casas não amam. Pode até ser que o façam, mas nunca lhes demos bocas para que o falassem.
Alguns dias se foram até que eu finalmente a trouxe a publico. "Que obra divina!", diziam as mulheres. "Muito bem planejada!", homens da área concordavam. "Quero passar meus últimos anos aqui!", por fim os mais avançados em idade afirmavam. E todos a amavam, a todos ela conquistava, assim como a mim também fizera ao vê-la acabada. Engraçado como as paixões chamam-se fugazes apenas após terem-se ido.
Plantei as primeirais flores e vi em minha mente o belíssimo jardim que ali havia de se desenvolver. Maravilhoso e imponente em sua pequenez e simplicidade. No entanto, algo começava a soar-me estranho. Uma voz trazida aparentemente pelo vento dizia-me não ser aquela casa algo tão bom; contrariava, entretanto, meu coração, que a ela se doava e em sua homenagem ainda prestava elogios. Eu ignorava ambos e me atia a prosseguir meu trabalho. Sem muito pensar, sem muito pestanejar.
Aconteceu que um mês após tal episódio a voz do vento já não mais me soprava aos ouvidos, mas ao coração; este, por sua vez, contaminava-se com a blasfêmia proferida contra a edificação e abstinha-se de sentir o mesmo amor que outrora lhe fora tão inevitável. Eu ignorava agora aquilo que havia ignorado antes e atia-me a pensar, sem muito trabalhar, se a escolha de construí-la fora tão acertada quanto me parecera logo de início. Talvez o vento estivesse correto. Talvez as pessoas tivessem sido iludidas pelo novo, talvez eu mesmo houvesse me deixado persuadir por tanta novidade. A casa não era bela, afinal. Sentei-me, pensando quando a destruiria, pois não me parecia boa idéia tentar remendá-la. Soneto não era, certamente, mas assim como se faz poesia eu também a fizera.
Para a obra não chamei ninguém. Fui-me sozinho, descalço e, dessa vez, sem rumo fixo. Chegando-me frente a ela agachei-me e observei. Vieram-me de súbito os motivos pelos quais deveria destruí-la. Seus espaços eram demasiadamente estreitos, aquele jardim não era tão atraente e as cores vivas cegavam os olhos. Tanta alegria me parecia despropositada. Melhor era fazer uma outra, maior, mais larga, com uma pintura mais fria e possivelmente menos convidativa. Quiçá uma que se assemelhasse mais àquela que antes dela viera. O descontentamento foi-me então completado e a atitude, tomada.
No dia seguinte já não havia tijolo sobre tijolo, apenas ruínas, escombros coloridos. O céu estava nublado e eu iniciara a construção do que viria a ser a próxima casa. Não demoraria muito, cria eu, para que eu a vislumbrasse em sua concretude. Chamaria uma vez mais muita gente para contemplá-la e amá-la juntamente a mim.
O tempo se passou, eu a terminei e depois também a demoli. Demoli muitas outras que com muito ou nem tanto esforço construí. Meus amores por elas variaram em sua duração, mas sempre tiveram a mesma intensidade. Arrebatando-me por segundos ou meses, faziam-me vivo por aqueles instantes. Hoje tenho uma cidade inteira feita de entulho. Às vezes a acho feia e dela quero fugir, mas há momentos em que a amo como se fosse tudo que eu tivesse. Talvez a vida seja assim mesmo, talvez precisemos quebrar e construir, sem nunca parar, até achar uma casa que não derrubaremos. Uma casa que nos verá cair, que estará lá no dia de nossa demolição e resitirá, mais que nós, à impetuosa voz do vento. Uma casa que permanecerá até que alguém a ache desnecessária e, no seu lugar, resolva derrubá-la.
domingo, 23 de outubro de 2011
Uma escrava fugidia.
Não queria me deixar embalar. Não queria me deixar pertencer, menos ainda ser pertencido. Queria só caminhar sem minhas barreiras ou os empecilhos de outrem. E acreditei ser capaz. Acreditei no que me diziam meus guias interiores, ano após ano construídos com aqueles minúsculos blocos formadores dos sonhos. Eles sempre me disseram uma coisa quando o mundo me mostrava outra. Tão enganados quanto eu, pobres infelizes.
No fim da estrada soube por uma voz externa que o mundo é assim mesmo. Tudo que nos conquista, nos amarra. Tudo que deprezamos nos liberta. Pois desprezei minha vida então, se assim me viria de bom grado a liberdade. Mas não veio. Em seu lugar mandaram a agonia, o pesar e a lamentação. Talvez os sentimentos também tenham suas amarras, suas limitações e não possam andar por aí e se atirar em quem bem entenderem. Pensaram ser livres e usaram poetas crentes na liberdade para assim mostrarem-se ao mundo. Tão enganados quanto eles, pobres infelizes.
E a hesitação optou - ou foi ordenada - por fazer morada em mim. Achei ser a indecisão alguma forma de liberdade. Se todos escolhem, não preciso eu também fazê-lo. Isso me soou, por breves instantes que agora não sei precisar, como aqueles ventos de liberação da alma dos quais tanto nos falam. Mas senti então serem talvez os mesmos que a Enéias naufragaram e agora tencionavam levar-me junto. Desobedientes que eram, embora ainda subjugados às suas próprias ambições. Tão enganados quanto todos, pobres infelizes.
Tentei esvaziar-me, mas percebi que o vazio era tão preenchedor quanto a plenitude. E parei de julgar. Só entendi que o amor não me libertaria, pois junto a ele vinha o apego. O ódio tampouco me parecia saída, pois me forçaria a não gostar. O gostar me pareceu duvidoso; não era intenso como o amor - pelo menos assim me haviam ensinado -, mas não te largava sem deixar sequelas. Sequelas de comportamento ou de falta do mesmo. E nada mais me pareceu liberdade, posto ter tudo o seu lado oposto.
E me vi no espelho, este infeliz objeto obrigado a refletir mesmo aquilo que não lhe apraz. Vi os outros no espelho. Vi o mundo num espelho, pequeno, guardado dentro de um quarto escuro. Tão infelizes todos nós, pobres escravos. Escravos da química, da biologia, do universo, do planeta, dos outros, de nós mesmos. Escravos do ideal utópico da liberdade. Libertos apenas na utopia que nos escraviza. Por ela matamos, por ela morremos. Por ela sorrimos, por ela choramos. Dela nascemos, mas a ela talvez não voltemos. Uma escrava fugidia, que vive para nos servir e escravizar.
Tudo que nos conquista, nos amarra. Tudo que desprezamos nos liberta. Melhor consertar essa parte.
No fim da estrada soube por uma voz externa que o mundo é assim mesmo. Tudo que nos conquista, nos amarra. Tudo que deprezamos nos liberta. Pois desprezei minha vida então, se assim me viria de bom grado a liberdade. Mas não veio. Em seu lugar mandaram a agonia, o pesar e a lamentação. Talvez os sentimentos também tenham suas amarras, suas limitações e não possam andar por aí e se atirar em quem bem entenderem. Pensaram ser livres e usaram poetas crentes na liberdade para assim mostrarem-se ao mundo. Tão enganados quanto eles, pobres infelizes.
E a hesitação optou - ou foi ordenada - por fazer morada em mim. Achei ser a indecisão alguma forma de liberdade. Se todos escolhem, não preciso eu também fazê-lo. Isso me soou, por breves instantes que agora não sei precisar, como aqueles ventos de liberação da alma dos quais tanto nos falam. Mas senti então serem talvez os mesmos que a Enéias naufragaram e agora tencionavam levar-me junto. Desobedientes que eram, embora ainda subjugados às suas próprias ambições. Tão enganados quanto todos, pobres infelizes.
Tentei esvaziar-me, mas percebi que o vazio era tão preenchedor quanto a plenitude. E parei de julgar. Só entendi que o amor não me libertaria, pois junto a ele vinha o apego. O ódio tampouco me parecia saída, pois me forçaria a não gostar. O gostar me pareceu duvidoso; não era intenso como o amor - pelo menos assim me haviam ensinado -, mas não te largava sem deixar sequelas. Sequelas de comportamento ou de falta do mesmo. E nada mais me pareceu liberdade, posto ter tudo o seu lado oposto.
E me vi no espelho, este infeliz objeto obrigado a refletir mesmo aquilo que não lhe apraz. Vi os outros no espelho. Vi o mundo num espelho, pequeno, guardado dentro de um quarto escuro. Tão infelizes todos nós, pobres escravos. Escravos da química, da biologia, do universo, do planeta, dos outros, de nós mesmos. Escravos do ideal utópico da liberdade. Libertos apenas na utopia que nos escraviza. Por ela matamos, por ela morremos. Por ela sorrimos, por ela choramos. Dela nascemos, mas a ela talvez não voltemos. Uma escrava fugidia, que vive para nos servir e escravizar.
Tudo que nos conquista, nos amarra. Tudo que desprezamos nos liberta. Melhor consertar essa parte.
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
Uma queda eterna
You fall. You fall and you wonder. You wonder if it will ever stop. Maybe you will fall forever, endlessly screaming in silence, waiting for someone to reach out a hand for you to hold. But no one ever came, no one will ever come. You realize this is your fate, falling forever and never being able to help yourself. I guess I'm not gonna change at least not now, not before I die. But if I'm doomed to this I should consider keep on living. Is it a good choice? Actually, way more appropriate than asking 'bout "considering" something would be speaking of possibilities. So, is it possible to keep on living?
Disappearing would be a good way out of this situation. A good way out of myself. In fact, the problem is who I am, who I've created inside of this body. This fucking confused, crazy, unstable and not realiable creature that lives inside this matter. The matter will disappear and will then take away these scars. I don't want them anymore. I don't wanna face myself in the mirror anymore. It only increases the pain, it only hurts more and more and I can find no cure for my disease. Day by day, I live but I'm not happy. I didn't ask for this, I didn't ask for existing. That was not my choice. So why am I forced to bear a choice that wasn't mine in first place?
It's a difficult decision but I swear to God I see no other solutions. I don't have any strenght left to rise up and keep fighting. And I just can't find it anywhere though I've searched for a whole life.
I'm just so lost. There's no light waiting for me in the end of this huge, scaring tunnel. There's only darkness, fear and sorrow. It's a cycle which I can't follow anymore.
Disappearing would be a good way out of this situation. A good way out of myself. In fact, the problem is who I am, who I've created inside of this body. This fucking confused, crazy, unstable and not realiable creature that lives inside this matter. The matter will disappear and will then take away these scars. I don't want them anymore. I don't wanna face myself in the mirror anymore. It only increases the pain, it only hurts more and more and I can find no cure for my disease. Day by day, I live but I'm not happy. I didn't ask for this, I didn't ask for existing. That was not my choice. So why am I forced to bear a choice that wasn't mine in first place?
It's a difficult decision but I swear to God I see no other solutions. I don't have any strenght left to rise up and keep fighting. And I just can't find it anywhere though I've searched for a whole life.
I'm just so lost. There's no light waiting for me in the end of this huge, scaring tunnel. There's only darkness, fear and sorrow. It's a cycle which I can't follow anymore.
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