domingo, 30 de outubro de 2011

O maior arquiteto

Há um tempo demoli uma casa. Já havia lhe consertado as paredes, ajeitado as janelas, remodelado todo o interior e ainda assim a visão não me agradava. Parecia-me, àquele momento, um tanto espaçosa demais, meio sem identidade, perdida num mar de confusões e cores deslocadas. Faltava-me pouco descontentamento para que finalmente a pussesse abaixo. O sentimento foi-me completado e a atitude tomada quando veio-me à mente a idéia de outra construção.
Essa nova casa seria menor, com espaços um tanto mais estreitos, um jardim à sua frente e pinturas mais vivas. Tencionava eu enchê-la de alegria para que pudesse aos outros também fazer sorrir. Se tão boa me parecia, tanto difícil quanto bela também se tornava. Mas pus-me a erguê-la. Tijolo sobre tijolo, dia após dia. Semanas ensolaradas de esforço e exaustão, com pouca ou nenhuma pausa pra alguma reflexão. Ao cabo de 40 dias eu a havia concluído.
Reluzia, brilhava e se entregava ao sol como se entregam os amantes ao seu desejo pelo outro. Não lhe fiz muita propaganda a princípio, posto querer admirá-la e retocá-la aos poucos sem que tais coisas fossem influenciadas pela opinião alheia. E gostei, confesso. Gostei, na verdade, parece-me palavra pouco justa à intensidade do que senti; amei-a, seria melhor dizer. Amei-a com meu ser, deixei minha alma por ela - mas também para ela - vibrar. E foi ela, então, tudo para mim. Não esperava a retribuição do sentimento, logicamente; casas não amam. Pode até ser que o façam, mas nunca lhes demos bocas para que o falassem.
Alguns dias se foram até que eu finalmente a trouxe a publico. "Que obra divina!", diziam as mulheres. "Muito bem planejada!", homens da área concordavam. "Quero passar meus últimos anos aqui!", por fim os mais avançados em idade afirmavam. E todos a amavam, a todos ela conquistava, assim como a mim também fizera ao vê-la acabada. Engraçado como as paixões chamam-se fugazes apenas após terem-se ido.
Plantei as primeirais flores e vi em minha mente o belíssimo jardim que ali havia de se desenvolver. Maravilhoso e imponente em sua pequenez e simplicidade. No entanto, algo começava a soar-me estranho. Uma voz trazida aparentemente pelo vento dizia-me não ser aquela casa algo tão bom; contrariava, entretanto, meu coração, que a ela se doava e em sua homenagem ainda prestava elogios. Eu ignorava ambos e me atia a prosseguir meu trabalho. Sem muito pensar, sem muito pestanejar.
Aconteceu que um mês após tal episódio a voz do vento já não mais me soprava aos ouvidos, mas ao coração; este, por sua vez, contaminava-se com a blasfêmia proferida contra a edificação e abstinha-se de sentir o mesmo amor que outrora lhe fora tão inevitável. Eu ignorava agora aquilo que havia ignorado antes e atia-me a pensar, sem muito trabalhar, se a escolha de construí-la fora tão acertada quanto me parecera logo de início. Talvez o vento estivesse correto. Talvez as pessoas tivessem sido iludidas pelo novo, talvez eu mesmo houvesse me deixado persuadir por tanta novidade. A casa não era bela, afinal. Sentei-me, pensando quando a destruiria, pois não me parecia boa idéia tentar remendá-la. Soneto não era, certamente, mas assim como se faz poesia eu também a fizera.
Para a obra não chamei ninguém. Fui-me sozinho, descalço e, dessa vez, sem rumo fixo. Chegando-me frente a ela agachei-me e observei. Vieram-me de súbito os motivos pelos quais deveria destruí-la. Seus espaços eram demasiadamente estreitos, aquele jardim não era tão atraente e as cores vivas cegavam os olhos. Tanta alegria me parecia despropositada. Melhor era fazer uma outra, maior, mais larga, com uma pintura mais fria e possivelmente menos convidativa. Quiçá uma que se assemelhasse mais àquela que antes dela viera. O descontentamento foi-me então completado e a atitude, tomada.
No dia seguinte já não havia tijolo sobre tijolo, apenas ruínas, escombros coloridos. O céu estava nublado e eu iniciara a construção do que viria a ser a próxima casa. Não demoraria muito, cria eu, para que eu a vislumbrasse em sua concretude. Chamaria uma vez mais muita gente para contemplá-la e amá-la juntamente a mim.
O tempo se passou, eu a terminei e depois também a demoli. Demoli muitas outras que com muito ou nem tanto esforço construí. Meus amores por elas variaram em sua duração, mas sempre tiveram a mesma intensidade. Arrebatando-me por segundos ou meses, faziam-me vivo por aqueles instantes. Hoje tenho uma cidade inteira feita de entulho. Às vezes a acho feia e dela quero fugir, mas há momentos em que a amo como se fosse tudo que eu tivesse. Talvez a vida seja assim mesmo, talvez precisemos quebrar e construir, sem nunca parar, até achar uma casa que não derrubaremos. Uma casa que nos verá cair, que estará lá no dia de nossa demolição e resitirá, mais que nós, à impetuosa voz do vento. Uma casa que permanecerá até que alguém a ache desnecessária e, no seu lugar, resolva derrubá-la.

domingo, 23 de outubro de 2011

Uma escrava fugidia.

Não queria me deixar embalar. Não queria me deixar pertencer, menos ainda ser pertencido. Queria só caminhar sem minhas barreiras ou os empecilhos de outrem. E acreditei ser capaz. Acreditei no que me diziam meus guias interiores, ano após ano construídos com aqueles minúsculos blocos formadores dos sonhos. Eles sempre me disseram uma coisa quando o mundo me mostrava outra. Tão enganados quanto eu, pobres infelizes.
No fim da estrada soube por uma voz externa que o mundo é assim mesmo. Tudo que nos conquista, nos amarra. Tudo que deprezamos nos liberta. Pois desprezei minha vida então, se assim me viria de bom grado a liberdade. Mas não veio. Em seu lugar mandaram a agonia, o pesar e a lamentação. Talvez os sentimentos também tenham suas amarras, suas limitações e não possam andar por aí e se atirar em quem bem entenderem. Pensaram ser livres e usaram poetas crentes na liberdade para assim mostrarem-se ao mundo. Tão enganados quanto eles, pobres infelizes.
E a hesitação optou - ou foi ordenada - por fazer morada em mim. Achei ser a indecisão alguma forma de liberdade. Se todos escolhem, não preciso eu também fazê-lo. Isso me soou, por breves instantes que agora não sei precisar, como aqueles ventos de liberação da alma dos quais tanto nos falam. Mas senti então serem talvez os mesmos que a Enéias naufragaram e agora tencionavam levar-me junto. Desobedientes que eram, embora ainda subjugados às suas próprias ambições. Tão enganados quanto todos, pobres infelizes.
Tentei esvaziar-me, mas percebi que o vazio era tão preenchedor quanto a plenitude. E parei de julgar. Só entendi que o amor não me libertaria, pois junto a ele vinha o apego. O ódio tampouco me parecia saída, pois me forçaria a não gostar. O gostar me pareceu duvidoso; não era intenso como o amor - pelo menos assim me haviam ensinado -, mas não te largava sem deixar sequelas. Sequelas de comportamento ou de falta do mesmo. E nada mais me pareceu liberdade, posto ter tudo o seu lado oposto.
E me vi no espelho, este infeliz objeto obrigado a refletir mesmo aquilo que não lhe apraz. Vi os outros no espelho. Vi o mundo num espelho, pequeno, guardado dentro de um quarto escuro. Tão infelizes todos nós, pobres escravos. Escravos da química, da biologia, do universo, do planeta, dos outros, de nós mesmos. Escravos do ideal utópico da liberdade. Libertos apenas na utopia que nos escraviza. Por ela matamos, por ela morremos. Por ela sorrimos, por ela choramos. Dela nascemos, mas a ela talvez não voltemos. Uma escrava fugidia, que vive para nos servir e escravizar.
Tudo que nos conquista, nos amarra. Tudo que desprezamos nos liberta. Melhor consertar essa parte. 


sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Uma queda eterna

You fall. You fall and you wonder. You wonder if it will ever stop. Maybe you will fall forever, endlessly screaming in silence, waiting for someone to reach out a hand for you to hold. But no one ever came, no one will ever come. You realize this is your fate, falling forever and never being able to help yourself. I guess I'm not gonna change at least not now, not before I die. But if I'm doomed to this I should consider keep on living. Is it a good choice? Actually, way more appropriate than asking 'bout "considering" something would be speaking of possibilities. So, is it possible to keep on living?
Disappearing would be a good way out of this situation. A good way out of myself. In fact, the problem is who I am, who I've created inside of this body. This fucking confused, crazy, unstable and not realiable creature that lives inside this matter. The matter will disappear and will then take away these scars. I don't want them anymore. I don't wanna face myself in the mirror anymore. It only increases the pain, it only hurts more and more and I can find no cure for my disease. Day by day, I live but I'm not happy. I didn't ask for this, I didn't ask for existing. That was not my choice. So why am I forced to bear a choice that wasn't mine in first place?
It's a difficult decision but I swear to God I see no other solutions. I don't have any strenght left to rise up and keep fighting. And I just can't find it anywhere though I've searched for a whole life.
I'm just so lost. There's no light waiting for me in the end of this huge, scaring tunnel. There's only darkness, fear and sorrow. It's a cycle which I can't follow anymore.

sábado, 1 de outubro de 2011

Olhos fechados (Parte 1)


Correu. Foi-se em direção à porta na maior velocidade que conseguiu atingir, mas o tempo, ao que parece, naquele dia não se inclinara à bondade. Seu relógio já lhe alertava sobre o atraso e agora o metrô tratava de revolver o problema momentaneamente enterrado. Parou a poucos, contáveis centímetros do trem e bufou. Não é possível que meu dia esteja desse jeito. Hoje a sorte resolveu virar a cara para mim, pelo visto.
         Aparentemente enganara-se, pois as portas do vagão abriam-se novamente à sua frente. “Não segure as portas do trem. Isso provoca atraso em todo o sistema”. Ok, isso não vira ninguém fazer, mas já que aquela mesma sorte, há até alguns segundos distante e impassível, agora girava um pouco o rosto para o lado a fim de lançar-lhe um olhar de soslaio era melhor que aproveitasse a deixa e adentrasse logo o veículo.
         Pelo menos isso, pelo menos isso. Sentou-se ao lado de uma criança inquieta que rolava seus dois carrinhos pela janela. “Mãe, mãe, o azul é mais rápido, olha!”. A mulher dirigiu ao garoto um sorriso, fingindo se importar mas lembrando a si mesma de que o marido ainda não voltara de seu passeio da noite retrasada. “Onde estará, meu Deus? Como pode sumir assim? Será que o canalha me trocou por uma vagabunda por aí? Mas se eu pego ele... vai ver que dele não sobra nem metade”. Ah, agora essa barulheira. Vou é me sentar em outro lugar. Ninguém merece criança chata a essa hora do dia.
         E levantou-se. Fisicamente com o andar habitual, mas mentalmente com a mesma pressa – ou talvez até maior – que tivera fazia alguns minutos em sua tentativa de não perder o trem. A mulher e o filho ficaram para trás; ele brincando com a irrealidade externa da brincadeira e ela tentando concretizar internamente aquilo que lhe parecia ainda pouco real. Caminhou por entre os carros até alcançar quase a outra extremidade da composição. Sentou-se novamente. Que bom, aqui não tem ninguém irritante. Sua cabeça parecia ser atraída para a parede. O sono colaborava, claro. Sem pestanejar recostou-a e relaxou. Só não podia perder a estação. Daqui três preciso descer. Não posso esquecer de pegar as flores no quintal da dona Neide olha que coisa mais bela! Quero uma assim na minha casa. Não, não, sem muito cheiro se não a alergia me ataca e você viu o noticiário? Chuva de asteróides? Imagina, que absurdo a mãe dele dizer tais coisas. Ah, olhe o céu. Olha que coisa mais bela!
         Pum! Seu corpo sacudiu e seus olhos piscaram. Cochilara sem perceber. Preocupou-lhe saber onde se encontrava e olhou para fora do trem. Ainda bem, faltavam duas estações. Que bom que não dormi tanto assim. Mas preciso tomar cuidado, senão dona Neide! A senhora por aqui! Como vai? Pum! Droga, não posso dormir! Por que diacho não fui pra cama mais cedo noite passada? Estou tão cansad... “Uma chuva de meteoros cairá essa noite na Terra. Para aqueles que estão nos observatórios do Hesmifério Sul será um espetáculo”. São meteoros, não asteróides! Esse povo tá doido! Preciso contar a ela que... Pum! Acordou novamente e arregalou os olhos até quase saltarem das órbitas. Acorda, caçamba! Se eu passar da estação e atrasar ainda mais meu chefe me estrangula. Acorda, senã...
         Seu olhar se deteve. O corpo inteiro retesou e o coração saltou-lhe à boca. Se a beleza podia tomar forma humana, se lhe era possível encarnar-se entre os pobres mortais desse planeta então ela estava ali naquele momento. Olhos brilhantes, cabelo como nenhum outro e corpo esculpido a dedo pelo mais talentoso artífice já existente. O rosto se delineava em pura perfeição. O mundo definitivamente parara. Como poderia aquilo ser real? O que é isso? Ele é o homem mais lindo que já vi em toda a minha vida. E seus 29 anos lhe davam certa moral para dizê-lo. Será que ele tá me vendo? Meu Deus, mas e se ele... Quantas estações faltam? Merda, é a próxima. Logo agora que esse cara chegou aqui. O que que eu faço?
         Num misto de faz-não-faz, fala-não-fala, vai-não-vai levantou-se. O leve balanço do trem desnorteava um pouco mas não era suficiente para lhe tirar o equilíbrio. Um passo à frente, dois para trás e o arrependimento lhe golpeando incisivamente o coração. O que eu posso fazer, oras? Falar um oizinho como se fôssemos colegas? Não, não rola. Mas ele é tão... “Próxima estação, Pinheiros". Ele levantou, ai meu Deus! Será que eu não to horrível? Deveria ter me arrumado melhor. Ah, não! Saiu do metrô junto com a multidão (coisa rara na estação Pinheiros esse metrô cheio assim!) debatendo em cochichos retóricos o quanto aquele dia se lhe mostrava ingrato. Perder um cara lindo daqueles, como pude?
         Verdade é que o rapaz – ou deus grego, se assim convier – apenas mudara de lugar, sem insinuar realmente intenção de deixar o meio de transporte. Melhor ir trabalhar e não pensar nessas bobeiras. Ganho muito mais! E foi-se, com pressa, desassossego e nervosismo. Um pouco de cada pra completar seu belo dia. É, isso mesmo. Tudo pra completar meu dia.
        

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Claro

Pinga, pinga, pinga
Repete o som da canção
O meio e o fim da sensação
Tocam-se como velhos parceiros

Se há ou não verdade nas palavras
Deixo aos outros a análise
Mas real é esta minha catarse
Disso não abro mão

Creia quem o quiser
Desista aquele que assim desejar
Ajoelhe-se o pobre sem lar
E chore o palhaço no circo

Que saibam todos:
"A verdade se dá a poucos"
Fujam então os outros
Corram para além-muro

Pinga, pinga, pinga
Escorre pelo rosto e vai ao chão
Que consigo vos leve o perdão
E que a noite se faça manhã

Não seja eu o mesmo amanhã
Sejamos nós o céu do universo
7 bilhões de estrelas a brilhar
E o mundo talvez clarear

O lixo já está cheio!

Gritou. Gemeu, contorcendo-se em sua pequena gaiola. A sensação era intensa. Seu corpo inteiro doía, seus olhos ardiam. O olfato captava um leve cheiro de queimado, mas os olhos não respondiam ao cérebro. Permanecia sem nada ver. Só a escuridão e os ruídos estavam alí.
- Não acha que seria melhor subir um pouco a voltagem?
- Lógico que não! Ele ainda não se acostumou. Vê? Continua esperneando como se ainda fosse o primeiro choque. Aumentar a intensidade poderia matá-lo.
Pareceu ter recobrado um pouco a consciência e se pôs a fazer barulhos numa tentativa frustrada de chamar a atenção de alguém. Não se pode dizer que raciocinava, posto não possuir sequer uma língua; os sinais de sofrimento, no entanto, eram claríssimos. Se pudesse falar provavelmente estaria pedindo socorro ou dizendo impropérios àqueles dois homens. Talvez fizesse os dois, na verdade.
- Vamos lá!
Um deles apertou o botão e novamente os gritos encheram a sala. Nada mais se ouviu durante cinco segundos; somente o escandâlo e o som do corpo se batendo em desespero contra as grades. Breves segundos que para aquele ser assemelharam-se a anos. A eletricidade deixou, então, de correr, cessando também a gritaria. A respiração da criatura estava ofegante, seu coração parecia querer sair-lhe pela boca. Os membros tremiam freneticamente enquanto ele se encolhia no chão.
- Droga! É tão difícil assim perceber que indo pro outro lado os choques param?
- E olha que esse nem é um dos piores. Lembra daquele que ficou 3 horas seguidas sendo eletrocutado até que finalmente decidiu tentar fugir e deu de cara com a outra parte? Às vezes eles dão um trabalho.
- Nem fale. Pior é quando nos mordem! Já perdi a conta de quantos me feriram quando tentei agarrá-los.
O botão foi então novamente pressionado e o martírio voltou.
- Mas sabe de uma coisa? Não sempre, mas ocasionalmente acho legal ver as reações de alguns deles.
- Sério?
- Sim. Só me irrita muito quanto vomitam em tudo. Dá um puta trabalho limpar essas porcarias e aí vem um infeliz pra sujar novamente.
- Ah, isso é verdade. Pelo menos esses aqui não ficam cheios de feridas pelo corpo. Melhor assim, sem sangue.
- É, mas de vez em quando surgem umas hemorragias, né? Dependendo de como for é outra coisa que exige muito tempo pra consertarmos. Bom mesmo é quando é só hemorragia interna.
- Você se diverte vendo isso tudo?
Os dois pareciam, naquele momento, ignorar o choque que continuava a ser aplicado, embora a criatura estivesse fazendo um barulho muitíssimo maior se comparado aos testes anteriores. Jogava ainda com mais força todo o seu peso contra as paredes da gaiola. Era inútil, no entanto. A armação não se movia um centímetro sequer. Nada mudava. Tombou, sentindo estar a ponto de sucumbir, de não mais suportar aquela sensação. Seu corpo ardia, latejava; sua cabeça estava atordoada. A boca secara quase completamente. Espremia os olhos e compactava o corpo o máximo possível.
- Não diria se tratar exatamente de diversão. É curioso ver as expressões faciais, os movimentos, ouvir os guinchos e o esperneio todo. Para mim, parece um daqueles passatempos perfeitos para os momentos de tédio, sabe? O melhor é que nos pagam por isso.
Ambos riram, deixando grandes sorrisos tomarem conta de seus rostos.
- Entendo. Não difere muito de mim, então. Gosto também de ver como se desenvolvem depois. O comportamento depressivo, a insônia, a agressividade. Tem muita coisa que não colocamos nos relatórios, mas...
- PORRA! Você desligou o negócio?
- Que negóci... Não, não desliguei! Merda, merda, merda!
O homem correu para desativar o mecanismo, amedrontando em pensar que a cobaia talvez não tivesse resistido ao choque contínuo. Aproximaram-se da jaula e observaram. Nenhum sinal de respiração, nenhum choro. Nada. Só o silêncio. Trocaram olhares e pegaram as chaves para abrir a portinha e retirar o corpo já inerte daquela criança. Quando pegaram-no parecia estar dormindo. Um sono leve, calmo, como se sua mãe o tivesse no colo e nada pudesse, portanto, lhe fazer mal. Seu sono, entretanto, era profundo demais para que um dia dele despertasse. A morte chegara a ele em menos de dois anos de vida. Seu sofrimento se esvaíra.
- Cacete, viu?! Se ficarmos errando certamente seremos demitidos! Colocarão um fim à nossa experiência.
- Eu sei, eu sei! Não precisa falar.
- Ele era o A19, né?
- Devia ser, sei lá! Caralho, esse lixo aqui já tá cheio!
- Pega um outro, então! Saco é o que não falta.
O homem abriu um armário embutido e retirou uma sacola, depositando aquele pequeno humano dentro dela. Amarrou com força e colocou-a ao lado do cesto que estava lotado. À noite levariam os resíduos e o laboratório ficaria limpo. No dia seguinte chegariam alguns bebês novos para dar prosseguimento aos testes, mas isso não lhes preocupava muito. Já viriam até numerados, o que facilitava o trabalho. De onde aquele saco novo saíra havia muitos outros e os lixos já teriam sido esvaziados pelo amanhecer. Só rezavam para manterem seus empregos e conseguirem algum resultado em suas análises.

A destruição inerente

Um enigma sem solução, a charada à qual ainda falta resposta. Não fosse eu respondê-la talvez nenhuma alma o fizesse; difícil crer que mesmo o desalmado tal êxito alcançasse. Olhei para os lados, sem encontrar o suposto objeto tão mencionado. Disseram-me algumas dezenas de vezes ser infinitamente melhor procurar dentro de si, entretanto. Mas como seguir um conselho dessa natureza se nem mesmo creio haver algo no interior para a visão tentar buscar? Estão todos errados, concluo! Nada sabem, sobre nada falam! Enchem suas bocas de vãs palavras, prontas a serem lançadas para os inferiores idealizados. Se me imputam esta condição já não faz diferença. Inferior ou superior, o despropósito parece não variar tanto, tampouco diretamente. Inúteis são, embora úteis tentem fazer-se. É o nosso destino; inescapável como o dia de amanhã. Não para todos, haveremos de concordar.
A alguns tomo por certo a não existência do amanhã. Se deixarem seu ar escapar, voar, se perder; se a psyché puder caminhar com suas próprias pernas; se seu "eu" lhes abandonar e sozinho se puser a vagar é provável que não abram os olhos novamente. Uma pena será, no entanto, não haver Hades para ir. Talvez isso faça alguma diferença. Talvez o último suspiro antes do esquecimento eterno traga alguns tremores, embora os astrônomos possam posteriormente afirmar não terem notado oscilações na organização espacial dos planetas. Nem um astro novo, para a infelicidade de muitos. Dirão também os geólogos que a Terra em nada se alterou e com estes concordarão os físicos; por descuido, todavia, esquecerão a redução do espaço ocupado, posto haver um corpo a menos se movendo pela superfície terrestre. Mexendo um pouco no esquadro e ajustando as medidas torna-se fácil perceber a insignificância da vida humana, não?
Mas teimam, ainda assim, em inflar-se como se verdadeiros deuses fossem. Pouco importa que lhes falte capacidade de administrar suas próprias vidas; sabem fazê-lo bem demais quando se trata dos interesses alheios. Alguns anos na escola, estudo gramatical e grande aquisição vocabular não são suficientes para que recordem a importância do outro a fim de se construir o diálogo ou mesmo o conceito de "respeito". Poderiam refazer a lição de casa se tivessem mais tempo, mas não estou certo de sua capacidade de aprendizado. Reencarnações poderiam, portanto, não se prestarem à utilidade. Mesquinhos, hipócritas. Tão hipócrita quanto este que agora rearranja estas palavras. Farinha do mesmo saco. Inescapável, certo? Imutável, quiçá.
No final, pouco sentido há em responder a questão. A esfinge pode esperar muito tempo. Sua fome é saciada diariamente com aqueles que não chegam ao amanhã. E tudo por, provavelmente, não saberem a resposta. Mas se soubéssemos haveríamos de devorar-nos uns aos outros? Outra pergunta sem solução. A verdade é que mesmo sem resposta já nos devoramos. O homem pode ser o lobo do homem, mas certamente é também uma esfinge. Esfinge sem conhecimento, que não sabe realmente aquilo que desejaria escutar e devora, então, absolutamente tudo.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Os privilégios da comunidade LGBT³ brasileira

Ok, eu meu rendo. Dou o braço a torcer, meu caros. E não só eu, mas todos os homossexuais desse Brasil. Nós concordamos, finalmente. Foi difícil, mas a tempo abrimos os olhos. Estão certíssimos. Somos privilegiados e isso deve, sem dúvida alguma, ser combatido. A quem ainda restam dúvidas, melhor dar uma olhadinha em nossa vastíssima quantidade de privilégios. Pra facilitar as coisas, uma listinha com comentários. Vamos lá?

1) Temos o privilégio de não sermos respeitados.
Começamos arrassando já!
2) Temos o privilégio de não podermos construir uma família da mesma forma que um casal heterossexual.
Filhos? Pra quê?
3) Temos o privilégio de viver com medo de levar uma surra em qualquer esquina.
Opa, pura adrenalina, hein?! Pra quem gosta de viver no perigo esse é certamente sensacional.
4) Temos o privilégio de sermos chamados de pedófilos.
Ahh, esse é lindo. Quem não gosta de ter sua imagem denegrida e ser tratado como aberração?
5) Temos o privilégio de sermos muitas vezes rejeitados por família, amigos e desconhecidos.
Quem precisa de tudo isso? Relações sociais e familiares são absolutamente descartáveis.
6) Temos o privilégio de arcar com os mesmos deveres como cidadãos, mas receber menos direitos que o resto das pessoas.
Ué, certamente melhor que os negros que teoricamente não tinham alma, né?!
7) Temos o privilégio de sermos chamados de bichas, de asquerosos, de imundos, de doentes, de viados, de depravados e muitas outras coisas.
Bem, damos muita felicidade àqueles que adoram inventar ofensas. Só com o nosso grupo já dá pra fazer uma boa lista de xingamentos.
8) Temos o privilégio de não podermos demonstrar afeto em público sem correr risco de vida.
Mesmo caso do item 3. Ah, sem esquecer que afeto, amor, carinho são coisas retrógradas e idiotas, nas quais ninguém acredita ou vê necessidade.
9) Temos o privilégio de ter grupos neonazistas, fascistas e religiosos (fanáticos) contra nós.
Quanto mais gente pra brigar, melhor.
10) Temos o privilégio de, especialmente no caso das travestis e transgêneros, não conseguirmos um emprego por nossa orientação.
Melhor ainda. Não queremos trabalhar. Queremos SÓ curtição, sexo grupal e drogas.
11) Temos o privilégio de sermos caricaturados e não chegar a desenvolver relacionamentos afetivos profundos na televisão.
Claro! Gay é tudo a mesma coisa, não?! É igual negro, mulher, nordestino, boliviano, pobre... grupos dentro dos quais todo mundo é absolutamente igual.
12) Temos o privilégio de causar espanto nas crianças e atemorizar os pais com a idéia de que seus filhos possam virar gays.
Lógico. Sexualidade é E-S-C-O-L-H-A, não determinação biológica como a ciência diz.
13) Temos o privilégio de ter heterossexuais achando que só nos aproximamos deles por querermos sexo; nunca por amizade, afinidade ou qualquer outra coisa.
E poderia ser diferente? Se SÓ queremos curtição, sexo grupal e drogas (item 10) é óbvio que pra nós TUDO se resume a sexo.
14) Temos o privilégio de não podermos, em hipóteste alguma, crer em deus ou professar seu nome. (lembrado por Victoria Atadini)
E quem quereria, por livre e expontânea vontade, acreditar numa força ou num ser superior? Pra que ter o direito de seguir uma religião e se sentir bem dentro dela sem causar mal a ninguém?
15) Temos o privilégio de não podermos dar lição de moral em ninguém.
O mais legal numa discussão não é justamente ter seu ponto de vista rebaixado e ignorado?
16) Temos o privilégio de poder mudar de gênero sem precisar de cirurgia, já que gays são igualados a mulheres e lésbicas tornam-se o mesmo que homens.
Simples, rápido e ainda totalmente de graça.

Ufa, acho que acabei os que tinha em mente. Se alguém lembrar de mais algum, por favor, avise! Vamos atualizando isso aos poucos pra sabermos o quão privilegiados somos.
Mas seria bom deixar um recado aos opositores antes de concluir. Nós reconhecemos TODOS esses privilégios em nossa classe. Temos plena ciência de que somos cidadãos num patamar diferente dos demais justamente por conta de tudo isso. E, já que há tanta insistência e reclamação, posso vos garantir uma coisa: lutaremos ferrenhamente pra que todos esses privilégios caiam por terra. Não queremos mais carregar uma bagagem mais pesada, maior que a do resto das pessoas; nunca quisemos, aliás, pois foi a própria sociedade que cuidou de nos privilegiar dessa maneira. Desejamos somente a igualdade e certamente brigaremos cada vez mais pra que cheguemos a ela. Pouco a pouco, trataremos de eliminar cada um desses 16 privilégios, até que não reste um sequer. Garanto que um dia conseguiremos, ainda que nos custe muito suor e sangue.
À comunidade gay, fica um outro recado: ergamos ainda mais alto nossas vozes em memória d@s que morreram por esses privilégios e daquel@s que ainda estão sujeitos a eles diariamente. Deixemos de ser privilegiados e lutemos tão somente para nos tornarmos exatamente o que devemos ser: pessoas iguais a tod@s @s outr@s; nem melhores, nem piores; nem menores, nem maiores.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Abaixem as mãos!


Peraí, peraí, peraí! Estava aqui eu no meu PC lendo coisas aleatórias quando meu namorado disse que um vídeo recente feito pelo Malafaia tinha causado muita polêmica, com uma grande quantidade de pessoas - como era de se esperar - apoiando sua fala. Decidi ir ver como era a coisa, já partindo, logicamente, de duas premissas: 1) ia vê-lo falar, mais uma vez, um monte de baboseiras; 2) me irritaria muito com o conteúdo do vídeo, sem dúvida. Desnecessário dizer que acertei ambas, né?! Ainda assim, dessa vez minha reação foi um pouquinho diferente e eu realmente fiquei MUITO nervoso!
Como vocês podem comprovar assistindo ao vídeo, não há nada nele que Malafaia e a trupe PDNPPPFB (Pessoas de Deus Não Preconceituosas Pela Proteção das Famílias Brasileiras) já não tenha dito, repetido, escrito e lançado aos quatro ventos, mas a postura do mencionado pastor nessa gravação era incisiva demais pra que eu não explodisse. EVIDENTEMENTE meus interesses e o dele não batem e - pelo visto - a lógica se aplica ao resto de seus seguidores também, capazes de fanatismo ainda maior que o próprio lider; com tal coisa em mente é que fui ler os comentários da página do Youtube. Adivinhem só: fiquei ainda mais bravo e fiz questão de escrever algumas coisas a eles. O tema da postagem não é as minhas respostas, entretanto.
No vídeo Silas diz que está sendo perseguido pelos ativistas gays, que estamos tentando colocar uma mordaça na sociedade a fim de podermos fazer o que der na telha sem sermos repreendidos. Opa, opa, como assim?! Quem é que em TODAS as ocasiões políticas faz questão de transformar sua fala numa pregação, fazendo-nos sentir quase como se estivéssemos dentro de uma igreja? Quem é que insiste em nos dizer todos os dias que nossas práticas são erradas, que vamos pro inferno, que não podemos nos casar, que não podemos adotar crianças, que não podemos demonstrar afeto, que não podemos desrespeitar a Bíblia... enfim, que não podemos exercer nossa liberdade de fazer com nossas vidas o que bem entendemos? Quem é que demoniza tudo aquilo que vai contra suas crenças religiosas e impõe a vontade de seu deus a uma nação LAICA? Quem é que tenta insistentemente nos converter como se fôssemos uma espécie de loucos que precisassem ser curados imediatamente para pararmos de espalhar nossa doença pelo mundo? Quem é que passa por cima de TUDO somente pra defender - mesquinhamente, se me permitem dizer - seu ponto de vista? Pra todas essas perguntas há uma resposta claríssima: a bancada evangélica.
É isso que está errado, profundamente ERRADO! Não se pode ter um governo que está a serviço de pessoas que representam única e exlusivamente seus próprios interesses, que veem o resto da sociedade como um bando de perdidos que precisam de algum tipo de conserto para que possam ser dignos de serem defendidos! Não somos doentes, mas estou certo que se fosse o caso mereceríamos um tratamento infinitamente melhor do que nos é dispensado atualmente. Mas enquanto essa classe extremamente hipócrita - que diz amar o próximo como a si mesma, mas não está disposta a dar o braço a torcer para que o outro possa enxugar suas lágrimas - ditar as regras nesse país só nos restará o atraso, a subserviência e o pensamento restrito. Já passou da hora - e estamos muitíssimo atrasados - de todos aqueles que acreditam viver numa redoma de vidro onde o mundo é perfeito, de acordo com seus preceitos, acordarem para a realidade. As pessoas não são iguais e jamais serão; nem se estivéssemos em uma ditadura seriam. Chega de discursos inflamados e cheios de ódio disfarçados do mais puro amor divino, como se o deus tão proclamado fosse tolo e apoiasse cegamente tudo isso! Abaixem as mãos, tirem as máscaras! Vocês não são as vítimas.

sábado, 2 de julho de 2011

Meu grande sonho


E eu sonharei até o meu último suspiro que um dia homens e mulheres serão iguais, que a cor da pele não fará mais diferença, que os animais terão tantos direitos quanto os seres humanos, que tod@s terão do que se alimentar, onde morar, o que vestir e levarão em seus rostos um sorriso de felicidade e satisfação. Não haverá excesso, não haverá guerra, nem disputa de egos. A lei máxima será o respeito a tudo e a tod@s. A voz d@ men@r ecoará tão alto como a voz d@ maior e será ouvid@ tod@ aquel@ que dispost@ a falar estiver. Mortos - e muito bem enterrados - estarão o preconceito, a inveja, a soberba, a ganância e a intolerância que um dia vitimaram @s marginalizad@s e excluíd@s da antiga sociedade desigual. Alguns podem dizer que sou um sonhador a nutrir uma utopia, mas morrerei crendo que um dia ela será realidade mesmo que aqui eu não mais esteja para abraçar aquel@s que são e serão eternamente meus irmãos e minhas irmãs.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Sem pontuar

Não há ponto que
aponte a pausa a fazer

Só segue e prossegue
e correndo consegue
seu alvo bem breve
e leve atingir

Apresse
e não enseje
a prece e feche
seu leque a se abrir

Só corra
sem pausa e
deixe à rua a vida
sair

Que triste é saber
que tanto correr e
e os dias não ver é no fim
sem nada morrer

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Não!

Não quero!
Recuso-me a jogar
com as palavras e a vida a fazer
rimas emaranhadas.

Sem nexo, não ligadas
entre si, uma sensatez
inexistente, metáfora que
inteira se faz, revolta em mim.

Mas quero,
versos a criar, fé
com coração, à tona trazer
simples comparação, do nada imitação.

Amar é mudar,
ordem que seja
não respeitar, concordar
em sentido contrário andar.

Aquela

Seu rosto acalma, seus gestos
lançam, ao ar, sua alma
Não se vê, mas fala
e cala, aos poucos.

Embala, meio retórica,
metade de si atenta,
como quem saber tenta,
sem ver, a mente de outrem.

Se encontra, conosco, consigo,
e eu, sonâmbulo, a sigo.
Uma mulher, mais que uma
simples mulher, que conquista, cativa.

Enfim, inteira se doa,
sem fim se perdoa, e repete,
de si para si, que amanhã há de lembrar:
sua paixão maior é ensinar

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Pra ver e rever!


Fugindo um pouco dos temas das últimas postagens, hoje resolvi escrever sobre um filme que vi semana passada, na quarta-feira (19/01), lançado recentemente no Brasil com o título de "Além da Vida". Tendo direção de Clint Eastwood e contando com Matt Damon no elenco a trama não promete grandes coisas se julgada por seu trailer, mas certamente impressiona de uma forma inovadora. O roteiro não pareceu sequer beirar a simplicidade, posto que as cenas foram muito bem construídas e a individualidade dos personagens explorada da melhor maneira possível. Esses dois elementos juntos nos permitiam submergir no universo das emoções de pessoas com modos de vida tão distintos e personalidades oscilantes, levando-nos à percepção de que todos estavam em busca de algo, um pedaço de si mesmos perdido em algum lugar aparentemente inatingível; uns compreendiam essa procura e se guiavam por ela, enquanto outros simplesmente seguiam a correnteza de seus sentimentos frequentemente instáveis e acabavam, sem querer, encontrando respostas e questionamentos.
Não pretendo tornar esse texto um spoiler, portanto omitirei praticamente a história toda. Ainda assim, devo dizer que o longa superou absolutamente minhas expectativas. Quem já viu deve ter notado a proximidade de tudo aquilo com a vida real; em momento algum fica difícil fazer uma simples conexão com nosso universo, de nossos familiares, amigos e das pessoas que conhecemos em geral, fator de suma importância para criar uma empatia com os personagens. Muitos podem afirmar que um pecado cometido possa ser a constatação da inevitabilidade do destino através, principalmente, do desfecho, coisa que eu discordo plenamente. Aliás, mostrar como todos as nossas ações trazem consequências para o universo como um todo e mudam não somente a nossa vida mas também a de muitos outros seres humanos é um ponto chave no enredo para mim. Não se trata de destino, tampouco de sorte, apenas de escolhas, aquela velha coisa de "colhemos o que plantamos".
Estabelecendo isso como verdade, o filme ainda vai além e faz-nos refletir se possuimos ou não total controle sobre nossas vidas. Questiona se somos realmente os senhores de nossas ações, se estamos completamente conscientes, conduzindo-nos, consequentemente, a pensamentos mais profundos. Torna-se mais interessante ainda ver o jogo criado com a palava "Herefater", título original do filme. Pela tradução online do termo através do dicionário Michaelis, temos:

hereafter
here.aft.er
n futuro, vida futura. • adv depois, daqui por diante, futuramente.

Sendo assim, a história toma a liberdade - e isso, pra mim, é fantástico - de usar o nome em seu significado completo. De que forma? Muito simples! "Hereafter", como visto acima, pode significar tanto vida futura quanto daqui por diante ou depois. Quem está pensando que o tema "vida após a morte" é o centro do filme pode tirar o cavalinho da chuva. Isso, apesar de ter enorme importância, é apenas o plano de fundo de onde brota todo o resto. O "daqui por diante" é o nosso próximo momento, o dia seguinte, nossa próxima atitude até e, inclusive, depois do momento de nossa morte; essa sucessão é reforçada incenssantemente e sutilmente durante toda a trama. A passagem para "o outro lado" toma um caráter tão aceitável e normal, longe das centenas de preconceitos tão arraigados em nossa sociedade, que é colocada apenas como uma continuação. Sendo assim, o "daqui por diante", "depois", "futuramente" nunca termina. Temos o aqui, nossa vida nessa Terra, e temos o depois, o "here" e o "after". Ninguém some, ninguém evapora...só prosseguimos.
Todavia, não é pregada qualquer religião, seita ou coisa do tipo. Deus não entra na jogada, muito menos a fé. A única coisa que conta é a continuidade natural de nossa existência, independentemente de crenças pessoais. Como resultado disso temos um filme que pode ser assistido por todos e todas, capaz de ensinar e nos emocionar profundamente.
Àqueles e àquelas que estão pensando em ir a um cinema ver algo recomendo fortemente esse longa. Dúvido que se arrependerão. Quando tiverem visto tentem deixar um comentário dizendo se aprovam ou não a história. Eu quero revê-lo em breve, pois uma vez só não é suficiente pra captar toda a mensagem principal.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Não é o que parecia...

É engraçado observarmos os tipos de artistas que acabam ganhando destaque na mídia, o estilo de música que realmente vende. Não precisamos ir muito longe pra conseguir criar uma imagem, principalmente das cantoras (aqui excluo os homens pelo fato de mulheres estarem mais abertas a apostas e transformações drásticas na aparência). Meu gosto musical é bem variado e muitas vezes uma banda/artista não tem nada a ver com a outra, seja no ritmo, nas letras, nas atitudes e até mesmo na aparência; isso não significa, entretanto, que ouço de tudo, aprecio todo tipo de música e aceito qualquer coisa. Encantam-me melodias e palavras capazes de trazer-me alguma reflexão, algum pensamento que me faça crescer, seja ele qual for.
Em função disso, devo fazer uma declaração que talvez me encaminhe ao apedrejamento: eu ouço Avril Lavigne. A despeito do que possa passar pela cabeça de muitos, penso que um dia ela mostrou algo a mais em relação a todas as outras garotas na indústria musical. Poderia até ser puro marketing, mas era a imagem que chegava até nós; uma música que tinha um tom diferente, um descontentamento com a incessante venda dos corpos das cantoras ao invés do talento das mesmas que verdadeiramente nos fazia repensar se era aquele o nosso desejo, se precisávamos de toda aquela exposição sensual incapaz de engrandecer o potencial artístico daquelas mulheres. Avril não precisava mostrar 80% de seus atributos físicos para fazer sucesso e não parecia disposta a isso. Mas as coisas mudam, não é mesmo?!
Olhando hoje para essa moça (foto 1) não parece haver restado algo daquela menina (foto 2) que abominava a futilidade, as roupas de marca, os cuidados excessivos com a aparência física e todas essas coisas enfiadas goela abaixo das adolescentes como se fossem indispensáveis à sobrevivência delas.

                                                                         (Foto 1) 

                                                                         (Foto 2)

Não costumo opinar muito sobre famosos, o que fazem, o que deixam de fazer e coisas do tipo. Não me interesso pela vida pessoal deles e, portanto, raramente julgo-os. Ainda assim, pode parecer algo pequeno o efeito das mudanças na carreira de uma pessoa com tanto destaque quanto a Avril, mas, infelizmente, é uma coisa fenomenal. Milhares, milhões e - em casos como Lady GaGa - bilhões de adolescentes tomam seus ídolos como fonte de inspiração, muitas vezes fazendo sua vida girar em torno deles. E como os relacionamentos entre pais e filhos nem sempre são bem sucedidos a situação se complica, fazendo com que os exemplos comecem a vir de fora, sendo, muitas vezes, oferecidos por pessoas que só estão preocupadas com seu dinheiro. 
As jovens sofrem hoje com uma pandemia de baixa auto-estima e não podem levar a culpa por isso, porque a mídia as faz crer, de todas as formas possíveis e imagináveis, que há algo extremamente errado com elas. O cabelo não está certo, por isso é necessário alisá-lo, repicá-lo, tingí-lo, jogar mil produtos químicos até que fique bonito; as roupas não são boas o suficiente, portanto a melhor saída é correr para o shopping e comprar algo mais chamativo, que realce mais o corpo; aliás, o corpo também não está certo, porque dois quilos a mais realmente fazem muita diferença e é mil vezes melhor sofrer com anemia/anorexia/bulimia a se olhar no espelho e ver que sua barriga não é lisa como a superfície da mesa da sala; a cor dos olhos também não é tão bonita, por isso seria legal comprar umas lentes de contato coloridas a fim de parecer um pouco diferente; o rosto está com muitas espinhas e ninguém pode ver essa vergonha, então é bom ir à farmácia comprar um produto pra isso e, aproveitando a viagem, adquirir também lápis de olho, rímel, pó, batom, sombra, cilhos postiços, corretor, porque, pra falar a verdade, tudo está um horror e precisa ser mudado. E isso é absurdamente lucrativo, uma vez que, no fim das contas, torna-se melhor acreditar em reencarnação, se matar e tentar voltar num corpo mais belo ou simplesmente procurar mil e uma pessoas em quem se espelhar pra poder mudar sempre e nunca ter que aceitar a sua beleza natural.
Toda essa corrida só gera frustração atrás de frustração, porque nunca se atinje o patamar almejado, a garota nunca se torna sua musa inspiradora. E por quê? Simplesmente porque são duas pessoas diferentes, por mais parecidas que possam se tornar. Esse é o destino absolutamente imutável. Uma fã da Lady GaGa nunca será a Lady GaGa, assim como aquela menina que idolatra a Britney jamais se tornará a Britney. E o mesmo acontece no caso da Avril. Uma artista diferente, que não segue os padrões de beleza impostos, que não vende o corpo para fazer sucesso, que não ressalta a importância de uma aparência física perfeita, que não faz apologia à perda da individualidade é um grande apóio para aquelas e aqueles que não encontram seu lugar no mundo simplesmente por se acharem diferentes demais, feios e feias demais. 
Uma pessoa que me surpreendeu recentemente nesse quesito foi a P!nk, com sua nova música "Fucking Perfect". A letra fala sobre tudo aquilo que uma garota sofre em função da beleza externa que a sociedade exige dela e traz alívio para as que se afligem com essa questão. Serve também para meninos, claro, pois homens também recebem cobranças (e muitas, diga-se de passagem). Para quem ainda não viu, deixo o clipe no fim da postagem, que eu penso ser um dos melhores já produzidos. Ela recebeu duras críticas e teve o vídeo classificado como impróprio, mas só mostrou a realidade que muitas tentam camuflar. Quem vende beleza não se importa com a felicidade daqueles que a compram, apenas com o dinheiro que se pode tirar daquilo.
E a Avril começou a vender beleza e música ao mesmo tempo, como se ambas necessitassem estar atreladas. Suas músicas ficaram fúteis, pois agora ela cria uma letra dizendo "qual o problema se eu for a um milhão de encontros?" e "sou rainha do drama, sou a coisa mais foda que seus olhos já viram". Isso, pra mim, não traz nada de bom. Se ela sempre foi desse jeito e se escondeu atrás daquela máscara de menina revoltada pra poder construir sua carreira eu já não sei, mas definitivamente Avril Lavigne não é o que parecia! Só espero que as garotas que se inspiram nela percebam o pouco conteúdo presente em seu trabalho atual e não se deixem levar por essa nova imagem, criada, provavelmente, apenas para vender mais.

 
Vídeo da P!nk para a música Fucking Perfect

sábado, 22 de janeiro de 2011

E agora vamos a alguns rumos novos!

Pois bem, pessoas, como eu disse na postagem de ontem de manhã, agora o blog sofrerá algumas mudanças em seu conteúdo, mas creio que tais coisas trarão apenas crescimento a todos nós. Além do enfoque talvez mais político, preciso avisar-vos sobre uma coisa: tornei-me um Cyberativista! Isso mesmo, um ativista online. Ok, vocês devem estar se perguntando que diacho é isso; a explicação, todavia, é deveras fácil. Um Cyberativista nada mais é que um divulgador de notícias, matérias, campanhas, eventos e outras coisas voltadas ao desenvolvimento de atividades solidárias.
Já é de longo tempo a minha vontade de fazer algum tipo de trabalho voluntário, só que minha agenda sempre acabava ficando apertada e a disponibilidade de horário tornava-se escassa demais. Logo, o plano era adiado e eu marcava comigo um dia em que buscaria algo do tipo. Digamos que finalmente chegamos ao tão esperado momento e, de agora em diante, entre as outras postagens, haverão textos com informações vindas do site Voluntários Online. Aliás, se vocês quiserem conhecer mais a fundo o projeto e contribuirem da mesma forma, ou ainda fazendo algo diferente, visitem o link acima e informem-se.
Espero que o futuro do "Capita a tutti" seja bom e que possamos seguir juntos.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Conseguimos muita coisa, sem dúvida!

Embora a mídia praticamente não tenha noticiado a respeito, ontem milhares de pessoas se reuniram na Av. Paulista, às 17h, para protestar contra o aumento da tarifa de ônibus na cidade de São Paulo. Eu, diga-se de passagem, estava no meio da manifestação. Tudo teve início quando o atual prefeito, Gilberto Kassab, anunciou o aumento de 30 centavos no custo da passagem, ainda em dezembro do ano passado, elevando-a de R$2,70 para R$3,00. A medida foi aplicada em 5 de janeiro desse ano e garantiu a São Paulo primeiro lugar no ranking das tarifas mais caras do Brasil! Como defendido, o aumento, de 11,11%, foi estipulado muito acima do nível da inflação, de 5,25%, e gerará um acréscimo de cerca de 5% no orçamento mensal das famílias de baixa renda. No caso daqueles que contam apenas com um salário mínimo (atuais R$ 510,00), o transporte público poderá comprometer até 25,9% dos ganhos mensais, tirando, assim, pouco mais de um quarto do dinheiro recebido.
Tendo ciência destes fatos, entre alguns outros, o Movimento Passe Livre (MPL) organizou uma passeata para o dia 13/01/11, à qual compareceram cerca de 700 pessoas. A ação foi reprimida, no entanto, pela Polícia Militar quando os manifestantes alcançaram a Secretaria da Educação do Estado e terminou com um saldo de cerca de 30 detidos, fora aqueles atingidos com balas de borracha, spray de pimenta e bombas de gás lacrimogênio. Diz-se, ainda, que houve casos de espancamento e perseguição a outros grupos que nem sequer estavam ligados ao protesto. Um vídeo (abaixo) mostrando parte da violência aplicada contra os estudantes foi colocado no youtube, exibindo claramente a desproporcionalidade entre a agressão policial e a possibilidade de resposta por parte dos participantes do evento.

 
Ainda assim, o medo imposto não foi forte o suficiente para desestabilizar o grupo e ontem a reunião se repetiu, aumentando mais de 3 vezes o número de manifestantes. A concentração teve lugar na Praça do Ciclista, próxima ao metrô Consolação, e percorreu, das 17h40 às 20h, a Avenida Paulista, bloqueando duas das quatro faixas no sentido Brigadeiro. Enquanto algumas reportagens estimam em torno de 2500 pessoas outras vão além e chegam a afirmar que mais de 4000 compareceram ao ato. Seja como for, o saldo foi excelente e mostrou que o paulistano não está exatamente disposto a pagar taxas altíssimas para se locomover em sua cidade, vendo o aumento como meio de exclusão num sistema que já não permite oportunidades iguais a todos. Além disso, vale ressaltar que na recente pesquisa da Rede Nossa São Paulo o transporte público obteve nota 4,2, numa escala que ia de 0 a 10. 
A insatisfação é grande e certamente acompanha o encarecimento do serviço, que desde 2005, já nas mãos do PSDB, subiu 50%, enquanto a inflação, no mesmo período, mostrou-se em 30%. Ontem conseguimos muita coisa, sem dúvida, mas dia 27/01 tem mais e esperamos uma adesão maior ainda, pois só assim é possível ganhar a batalha. Para quem quiser mais informações, vai o link da comunidade do orkut: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=104101. Se não tiverem acesso à rede de comunicação, perguntem-me o que desejam saber e eu buscarei responder da melhor maneira possível! Posto algumas fotos aí embaixo pra vocês terem uma idéia de como foi tudo.

Vista da frente da manifestação (Foto: Vinicius Medeiros)

Vista da parte de trás da manifestação (Foto: Vinicius Medeiros)

Momento em que sentamos na Av., queimando a bandeira do estado de São Paulo logo em seguida (Foto: Vinicius Medeiros)

Ps: perdão por não postar mais informações referentes ao andamento do protesto em si, mas estou com pouco tempo e preferi postar pouco a não postar nada.

Mudanças à frente...

Como alguns já perceberam - eu acho -, minhas postagens estão começando a tomar um rumo diferente; atribui-se isso, logicamente, às mudanças que eu mesmo venho sofrendo, uma vez que o texto reflete o estado atual do autor, e o ritmo acelerado em que meus pensamentos se alteram. Tenho buscado por mais notícias, especialmente na mídia independente, começo agora a me envolver com alguns movimentos sociais (estive ontem no protesto contra o aumento da tarifa do ônibus em São Paulo, que detalharei em um post futuro) e nasce dentro de mim uma vontade de estar mais engajado com a política e outras coisas constituintes de nossa sociedade.
Dessa forma, há, certamente, uma transformação prevista no conteúdo das próximas postagens, bem como  o "nascimento" de uma abordagem e estilo diferentes dos que venho seguindo até o presente momento. Espero que os leitores continuem seguindo, lendo, buscando informação e, sem dúvida alguma, criticando o que julgarem necessário, posto que através da discussão - em seu contexto civilizado, claro - chega-se a novas idéias, conceitos e até mesmo propostas de crescimento para ambos os lados. Tentarei ser ainda mais assíduo e peço-vos para retornarem à página sempre que possível, especialmente hoje à noite pois darei uma notícia também importante e relacionada diretamente ao futuro do "Capita a tutti".
Obrigado pela atenção e vamo que vamo!

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

(Postagem antiga) Sete distâncias, sete tempos


Observava a lua, via as estrelas e contemplava a imensidão do grande absoluto
Sabia que nada era eterno, embora tudo se refizesse com certa precisão
Quatro palavras, não as disse, pensei-las sem encontrar fôlego para expelir o som
E lá estávamos nós, com sentenças mal acabadas e entrelinhas incoerentes
Queria eu olhar nos teus olhos e dizer tudo que guardei, tudo que soube e esperei para fazer
Mas não pude, não vi, não busquei seguir uma das duas vias que me levasse a algo diferente
Somente parei, olhei, encarei a realidade com olhos incrédulos e indignos, sem nada explicar
Quem dera poder um dia, com um tanto de compreensão e sabedoria, dizer-te as minhas inconstâncias
Para tanto, entretanto, deveria eu esclarecê-las antes a mim mesmo; fazê-lo, verdadeiramente, não aprendi
Digo-te, pois, que nada posso, sendo isso fruto de fatos vindos da alma, do coração de quem reconhece não conhecer aquilo que deveria ser conhecido
Encontraria paz nos meus desejos, mas trazer-me-iam dor com a qual seria incapaz de lidar
Responda-me apenas uma vez, diga-me a razão de estarmos a dois passos de um destino inescapável
Poderias tu mudar o que fazes? Poderia eu saber quais são minhas aparências e descobrir as sete faces?
Facilmente diria-te as certezas que tenho, porquanto as dúvidas se lhes mostram muito maiores e mais avassaladoras
Uma alma que não canta, que se perdeu em meio ao seu rumo esquisito e oscilante
Canta somente quando lhe espera algo mais, quando pensa haver achado seu tesouro perdido
Logo depois, porém, descobre que vazia é a vida das coisas que a rodeiam, tão vã quanto o que lhe sobra de sobriedade
Não caberia-lhe entender mais que sua capacidade, mas insistentemente corre atrás do que não lhe pertence
Perdoe-me por não poder, perdoe-me por minha fraqueza e ingenuidade
Pensava e visualizava quadrados arredondados, quase círculos girando num mundo agitado e impreciso
Mas estes, num posterior vislumbre talvez premeditado, mostraram-se como triângulos e trapézios
Magoaram-me com suas mentiras; no entanto, pior era eu que havia dado-lhes crédito
Estúpida criatura que fui, enganada e enganadora, a quatro tempos de uma decisão quiçá errônea
Passar-se-iam mais três para clarear-me a mente confusa e obscura, mas resultado não trariam
Deixar-se-iam penetrar os cantos e partes mais profundas daquilo que nenhuma pessoa jamais teorizou
E veria eu minha queda, minha tentativa final de reconstruir os muros da cidade em cinzas pela guerra eterna
Chorei, mas não me adiantou
A dor só perseguiu e estancou, cravou-se naquela pequena parte de sabedoria esquecida
E eu perdi, não fiz o que deveria fazer
Talvez deseje mais do que posso ter, talvez imagine mundos deveras exacerbadamente coloridos 
Inexistentes, falhos e fajutos, sem qualquer fundo de realidade ou experiência contabilizada
Não existem, assim como eu também não existo em meio a eles
Sou isso que sou, aquilo que entendo não ser
Pertenço a algo que não conheço, sem parentesco ou laço agradável
Prometo-me apenas uma coisa: saberei um dia o que faço e direi a ninguém minha descoberta.


Ps: escrevi esse texto em 29 de junho de 2010, publicando-o num blog que criei e abandonei (pra variar). É legal ver como muita coisa mudou daquela época pra cá.

Palhaçada talvez seja eufemismo (Atualização 1)


As modificações encontram-se no fim da postagem, com a respectiva data!

Se alguém viu meu facebook ontem - ou talvez o twitter - sabe o quanto tenho reclamado, desde as 13h, dos problemas no site do SiSU. Todavia, não sou apenas eu que está enfrentando problemas, mas sim dezenas de milhares de estudantes espalhados pelo Brasil todo. E tudo por quê? Por falta de planejamento e, ao meu ver, um enorme descaso conosco. Problemas do Enem à parte (sem ressaltar, claro, que ano passado ele foi adiado de última hora e agora ocorreram erros na impressão), a dificuldade em acessar o SiSU está estampada nas comunidades relacionadas ao assunto, principalmente no orkut. 
O jornal, por sua vez, pouco noticiou a respeito, sendo isso consequência, logicamente, do pronunciamento escasso, para não dizer quase inexistente, do MEC; nota-se ainda a aparente incompetência do órgão em administrar o programa, o que traz força para aqueles que são contra o Enem e o SiSU. Quando algo foi dito, tivemos palavras como "tenham calma" e "o site está um pouco lento". Agora vá dizer a todos que nesse momento fazem plantão na frente do computador, às centenas de jovens que devem ter utilizado lan houses para fazer sua inscrição e acabaram se frustrando por gastar dinheiro inutilmente, como também àqueles que não possuem fácil acesso à internet mas ainda assim se esforçaram para tentar ficar online, ainda que por breves minutos, só por causa do SiSU. Site lento?! Houve momentos em que nem se conseguia visualizar a página! Mas vamos pegar o problema pelo começo, certo?!
Pois bem, eu não entrei às 6h da manhã na internet justamente por temer a sobrecarga do sistema e as dificuldades que poderiam advir disso. A minha decisão, entretanto, não mudou nada, pois iniciei minhas tentativas às 13h e até o presente momento não obtive qualquer resultado satisfatório. Logo no início, conseguia acessar a home page do site e até passar à segunda janela, onde digitamos o número de inscrição e a senha do Enem. Ao passar para a terceira página, infelizmente, o tempo de resposta do servidor estourava e eu tinha que recomeçar. Depois de um tempo, a segunda página já não abria mais e não demorou muito para que a inicial tomasse o mesmo caminho; clicar no link do SiSU, encontrado pelo pesquisa do Google, tornou-se absolutamente inútil, uma verdadeira perda de tempo.
Essa situação perdurou por, pelo menos, oito horas, creio eu, alternando entre períodos em que era possível abrir até a segunda página e outros nos quais não dava sequer pra entrar no site. E haja paciência! Às 00h o expediente acabou, sendo o retorno da página previsto, segundo o MEC, para as 6h; por volta de 1h, contudo, as inscrições foram reabertas. Eu corri para tentar fazer a minha e consegui marcar até a opção de primeiro curso (correspondente à 4 página), mas o excesso de acessos novamente não me permitiu concluir o registro. Resultado: o site não se manteve por mais de 2 minutos no ar, sofrendo novamente problemas com a rede. Agora a página está fechada e não tenho idéia de que horas conseguirei finalmente resolver isso, havendo uma grande quantidade de jovens nesse país na mesma situação.
O pior de tudo foir ler uma reportagem onde o MEC afirma que a banda foi feita para suportar até 400 inscrições por minutos, sendo que na tarde de ontem as taxas chegavam a 600/minuto e 84 mil acessos simultâneos. Será incompetência do Ministério da Educação ou apenas falta de respeito com as pessoas que realmente dependem desse sistema para garantir sua vaga numa universidade de qualidade? Ambas as respostas não nos levam a algo bom, sem dúvida, e palhaçada talvez seja eufemismo pra tudo isso.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Como se não bastassem todos esses problemas, ontem ocorreu um ainda pior: por alguma espécie de erro no sistema, houve vazamento de dados dos alunos inscritos no SiSU! Isso mesmo, uma baita dor de cabeça para todos nós. Dezenas de alunos no orkut - e eu estou incluso nisso - relataram que ao abrir a página do site, digitarem seus respectivos dados e confirmarem, surgia uma mensagem de erro e então, inesperadamente, ao tentarem recarregar a página, informações de outras pessoas, com notas e opções de curso diferentes apareciam. Nessa hora um nervoso verdadeiro, e absolutamente fundamentado, tomou conta de todos, pois se qualquer um pudesse acessar a inscrição de outro candidato isso significava que havia risco de alterações nas opções individuais. Para comprovar tal afirmativa, alguns indivíduos começavam a declarar que seus cursos haviam sido mudados sem qualquer precedente. Eu, por exemplo, tive minhas duas inscrições canceladas.
Pipocaram centenas, se não milhares, de reclamações direcionadas ao MEC, Enem e SiSU, sendo que muitas chegaram a ser mandadas para diversos sites jornalísticos. Eu, por twitter, insistia em pedir ao MEC um pronunciamento a respeito do problema, embora tanto a minha voz quanto a de todos os outros que enfrentavam a mesma situação parecesse não ser ouvida. Não lembro ao certo o horário, mas o twitter do MEC consta de 21 horas atrás a primeira resposta em relação ao problema, ou seja, entre as 22 e 23 horas de ontem; toda a confusão, entretanto, tivera inicio às 19h23. O órgão alegou que um erro na memória cache causou o transtorno, mas nenhum dado, segundo o MEC, foi verdadeiramente alterado. Bem, o problema foi realmente resolvido, mas a atmosfera continua muito tensa em relação à gestão do programa. 
O site continua dando erros, apresentando lentidão excessiva e ainda é difícil acessar as inscrições. Hoje pela manhã a Defensoria Pública da União do Ceará (DPU) entrou com uma ação contra o Enem por conta dos problemas com as notas das provas, ainda sem levar em consideração as dificuldades com o SiSU. Agora é esperar pra ver se sai algo disso, porque no fim das contas nós pagamos o pato. Quem sabe com a alteração na presidência do Inep as coisas possam tomar um caminho, pelo menos, não tão difícil.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Depois do nervoso, um pouco mais de desespero.


Bem, acho que as pessoas mais próximas a mim - ou mesmo aquelas um bocado distantes - sabem que os três últimos dias foram bem tensos; para mais 35.764 pessoas, aliás, o nervosismo deve ter sido equiparável. E tudo por quê? Por causa da bendita da Fuvest, é claro! Esse vestibular para o qual nos preparamos durante meses e que definirá se faremos ou não o curso tão desejado numa faculdade de renome. Discussões acerca da qualidade à parte, temos a realidade: o vestibular da USP é o mais concorrido do país. Isso já basta pra causar um leve frio na barriga ao sabermos da nossa necessidade futura de enfrentá-lo, embora cada curso tenha suas particularidades no que tange o ingresso na universidade; prestar Medicina é totalmente diferente de candidatar-se a uma vaga em Letras. Eu, por sorte - e logicamente por afinidade -, escolhi a segunda dessas duas, não necessitando, portanto, preparar-me durante um ano ou mais e deixar algumas centenas de reais num cursinho. 
Mas a coisa não foi tão fácil quanto eu esperava. Após passar pela primeira fase, numa prova realizada em 28 de novembro do ano passado, veio a parte mais difícil, chamada segunda fase. Três dias de provas, cada uma com duração de quatro horas, e sem uma alternativa sequer. Todas as questões inteiramente dissertativas! Domingo foi o primeiro dia. Lembro de ter me sentido calmo, relaxado - ainda que quase tivesse sido assaltado uns quinze minutos antes - e não haver encontrado grandes dificuldades, fosse resolvendo as 10 questões de Língua Portuguesa ou escrevendo a redação sobre "altruísmo e pensamento a longo prazo na sociedade atual". Ainda assim, o mar de rosas não durou mais que 24 horas. Ao me deparar com as questões de Matemática, Física, Química e Biologia, já no dia seguinte, simplesmente entrei em desespero. Não sabia absolutamente NADA! Algum de vocês já olhou pra uma prova e disse pra si mesmo "fodeu"? Pois bem, repeti isso em voz baixa umas trinta vezes, mas ainda assim nada mudou; a prova continuou tão impossível quanto estava no começo e eu saí com um saldo de 7 questões respondidas...de 20!
Só queria chorar e me descabelar, lembrando incessantemente o quanto eu era um asno e achando que não seria nada na vida. Típico drama adolescente (e olha que em termos legais já sou adulto). Sobrevivi sem grandes cicatrizes, logicamente. Não morreria por causa de um vestibular; além disso, ainda havia o terceiro dia para recuperar tudo que eu perdera no anterior. E assim foi hoje. As 12 questões de História e Geografia podiam até não serem tão fáceis quanto eu gostaria, mas me permitiram respostas adequadas. Saber que resolvi todas elas me deu um grande alívio, pois a pequena esperança de conquistar minha vaga na USP renasceu.
Voltei pra casa feliz e saltitante, quase me sentindo estrela de filme hollywoodiano naqueles dias em que o céu parece mais azul, as plantas mais verdes, as pessoas mais bonitas e gentis e o mundo torna-se um lugar aconchegante e prazeroso para se viver. Ainda assim, parte da beleza esvaiu-se agora pouco. A tranquilidade absoluta resolveu ir junto, fechando a porta na minha cara e não me dando qualquer previsão de volta. Pensar que eu poderia entrar numa faculdade e saber que todo meu esforço só ocorrera por eu ter decidido a minha carreira futura trouxe-me um bocado de desespero. Comecei a dar os primeiros passos na construção daquilo que um dia hei de me tornar. E como saber se é o caminho certo? Aliás, como saber se, tomando ou não esse caminho, as coisas darão certo? Eu não faço idéia e se alguém souber, por favor, deixe um comentário com a resposta, mande uma mensagem ou escreva um livro a respeito. Ficaria profundamente agradecido.
Agora eu simplesmente empacoto meu nervosismo, deixo-o guardado em algum canto bem escondido e espero até os resultados das provas estiverem prestes a sair para colocá-lo em liberdade novamente. Até lá, sairei um pouco pra ver se encontro a tranquilidade em alguma esquina por aí. Quem sabe ela estava precisando de um tempo longe de mim, não é mesmo?!

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Duas faces de uma mesma moeda

Indignou-se por completo. Como assim a sua melhor amiga traíra o namorado daquela forma? Como tivera coragem? "Uma garota tão bonita, tão inteligente, tão meiga e carinhosa...que diabos haveria ocorrido pra que ela cometesse tamanha besteira?", indagou-se. Por fim desistiu de seu aparentemente preciosíssimo silêncio e lançou-lhe algo para refletir:
- Você pelo menos pensou no que ele sentiria quando soubesse?
Silvana balançou a cabeça para os lados, espremendo levemente os lábios e encarando a outra moça.
- Não, Lúcia! Nessas horas nós não pensamos em nada. Só acontece, sabe? - desviou o olhar por breves instantes - A culpa veio depois mesmo.
- Como assim "a culpa veio depois"? - disse em voz alta, assustando-se um pouco com seu próprio tom - Será que o tempo com o outro não foi suficiente pra te fazer refletir sequer por um segundo? Faltou cérebro na hora ou os pensamentos simplesmente foram embora? Não é possível, meu Deus! - colocou as mãos em sua cabeça e deu meia volta, olhando para o teto do refeitório - Onde esse mundo vai parar?
- Nossa! Esperava um pouco mais de apoio, pelo menos!
Silvana falava com a cabeça abaixada, os olhos cheios de água e uma voz apertada que parecia não desejar sair de sua boca. Esforçou-se e conseguiu um argumento em sua defesa.
- Acontece com muita gente, Lúcia! Eu não fui a primeira e nem serei a última, te garanto!
- Ahhhh, - irritou-se por fim, virando-se rapidamente e encarando a amiga nos olhos - não me venha com essa, de forma alguma! Isso é sacanagem, safadeza, falta de caráter, coisa de quem...
- De quem o quê? - gritou Silvana - Hein?! Vai dizer que nunca errou com ninguém, que é uma santa? Você não é nem um pouco melhor que eu, minha filha, tenha certeza!
- Nesse ponto te garanto que sim! Nunca trairia alguém, nunca mentiria para uma pessoa que amo! Isso não se faz, Silvana, de forma alguma! Não esperava uma atitude dessas vinda de você. E, - prosseguiu, interrompendo com um gesto a amiga que já reiniciaria seu discurso - espero que você tenha decência suficiente pra contar ao Flávio tudo que aconteceu. Enquanto não fizer isso não espere nada de mim, entendeu?
Sem parar para aguardar uma resposta pegou sua bolsa e saiu da sala, deixando a amiga sozinha. Aquela poderia não ter sido a melhor coisa a se fazer, pensou, mas não havia outra opção. Seria totalmente errado compactuar com o erro de Silvana e, portanto, não devia, de maneira nenhuma, falar dócil e calmamente com ela. Tinha que mostrar rigidez, opinião forte e imutável. Era isso mesmo! Estava certíssima e veria futuramente os bons frutos de sua decisão.
No caminho para sua casa, sentada no banco do ônibus, abriu uma revistinha há muito guardada em sua bolsa, dessas que compramos pela simples vontade efêmera de gastar dinheiro, e começou a folheá-la. Uma pequena história chamou-lhe a atenção e decidiu lê-la por completo.

"As duas faces da moeda"
O homem caminhava pela rua calmamente quando, ao tentar pegar uma bala dentro de seu bolso, deixou cair uma porção de moedas no chão; estas, todavia, não foram muito longe, parando a poucos centímetros do pé do sujeito. Quando ia abaixar-se para recolhê-las uma voz o assustou.
- Não, não faça isso!
Olhou rapidamente para a fonte daquela fala e viu um senhor baixo, de cabelos grisalhos e barba mal feita. Vestia-se malmente, como se usasse roupas apenas para cobrir sua nudez, não as vendo como algo realmente importante.
- Essas moedas são suas? - perguntou o estranho.
- S-sim. São minhas. Acabei de deixá-las cair sem querer.
Ao terminar de responder, o rapaz já ia se agachando novamente, mas foi interrompido pela mão do indivíduo ao seu lado.
- Espere um momento, cavalheiro!
- Esperar pelo quê? - falou, começando a irritar-se com a situação. Queria somente recolher seus pertences e prosseguir seu caminho, sem que para tanto precisasse ser importunado por um velho chato e desconhecido.
- Vejamos...
O outro homem ajoelhou-se no chão e começou a olhar as moedas enquanto falava baixo consigo mesmo. As poucas pessoas ao redor olhavam a cena com certo repúdio, mas, para manter a classe, fingiam estar ocupadas demais com suas próprias vidas e, portanto, serem indiferentes à situação. O dono do dinheio estava prestes a largar tudo aquilo ali mesmo e ir embora, pensando que talvez aquele senhor fosse um mendigo querendo arranjar pretexto para roubá-lo. Quando ia dar o primeiro passo, entretanto, o estranho falou:
- Interessante! Muito interessante mesmo!
Recolheu todas as moedas e devolveu-as ao proprietário. Encarou-o por breves segundos, refletiu e pousou sua mão sobre o ombro do homem.
- Concederia-me a honra de sentar-se um momento comigo? - pediu gentil e simpaticamente - Todo esse ocorrido fez-me pensar sobre algo que até então eu não refletira a respeito...queria compartilhar meu pensamento com alguém. Que me dizes?

Nesse momento um homem que passava no corredor deixou acidentalmente sua bolsa esbarrar em Lúcia, desculpando-se imensamente em seguida. Ela não se importou, mas o incidente fizera a revista cair de suas mãos e agora não conseguia encontrá-la. Estava começando a ficar irritada quando recebeu um cutucão em suas costas.
- Senhora, creio que isso seja seu.
Ela olhou rapidamente para a mão da pessoa que lhe chamara a atenção e viu sua revista, ficando feliz e agradecendo entusiasticamente.
- Não foi nada. - disse o homem - Aliás, essa revista é excelente! Pena que muita gente não a compra ou, se o fazem, deixam-na jogada em uma gaveta ou bolsa sem jamais ler uma página sequer.
Lúcia sorriu ligeiramente tímida e concordou com a cabeça. Virou-se para a frente novamente, o coração quase imperceptivelmente acelerado, abriu na página que estava antes de toda aquela confusão e passou os olhos pelas linhas até encontrar onde parara. Olhou pela janela para certificar-se de que ainda faltava um pouco para chegar ao seu destino e retomou a leitura.

O homem hesitou por alguns instantes. E se aquele cara quisesse fazer-lhe algum mal? Coisa boa não poderia ser, pensou. "É melhor eu agradecer, ir embora e deixar esse maluco pra trás antes que aconteça o pior", disse a si mesmo.
- Obrigado, senhor, mas eu estou com um pouco de pressa. Se não se importa, eu gostaria de...
- Pois me importo, claro! Custar-te-ia um olho ou muito dinheiro doar um pouco do teu tempo para bater um papo com um pobre e sozinho velho? Que há convosco, pessoas atarefadas e impacientes, que ignoram a presença de tudo aquilo que aparentemente não vos diz respeito?
O homem não soube o que responder. Melhor era não estender o papo e sair adando rápido. Se a situação piorasse, certamente correria. Foi parado novamente, todavia.
- Far-te-ei uma pergunta somente. - disse o outro - Se não quiseres respondê-la poderás ir embora, mas caso digas algo quererei debater contigo a questão e terás de fazê-lo. Aceitas?
Não, não aceitava. Só não teve tempo de dizê-lo.
- Pois bem. Viste quando tuas moedas caíram, certo?
O rapaz nada disse.
- Bem, quem cala consente, deste modo tomo um "sim" como resposta a isso. Espero que saibas, logicamente, que todas as moedas possuem dois lados.
É claro que sabia. A pergunta o deixara ainda mais nervoso por sua obviedade.
- Mas a questão não é essa. Poderias me assegurar, sem sombra de dúvida, que suas moedas possuem dois lados diferentes? Poderias afirmar categoricamente que todas elas possuem um lado "cara" e outro "coroa" e que nesse monte em teu bolso agora não há uma sequer que tenha duas "caras" ou duas "coroas"?
- Claro que sim! - respondeu imediatamente o homem, visivelmente transtornado. Toda moeda tem necessariamente dois lados diferentes!
- Aceitaste nosso acordo, então, pois deste-me uma resposta. - falou, abrindo um leve e disfarçado sorriso. Prosseguirei meu raciocínio.

Com um sobressalto Lúcia percebeu que seu ponto chegara. Fechou rapidamente a revista, enfiou-a apressadamente na bolsa e levantou-se do banco em disparada, quase correndo até a porta do ônibus. Deu sinal quase em cima da hora; menos de cinco segundos depois o veículo parou, abriu suas portas e a moça desambarcou. Pensou na história, mas seus pensamentos foram invadidos pela lembrança de sua discussão com Silvana. Não sentiu remorso algum, apenas preocupou-se por não saber como estariam as coisas àquela hora.
Chegou em casa, cumprimentou sua mãe com um beijo estalado no rosto e foi logo para seu quarto. Planejava terminar a história sentada na cama e depois fazer qualquer coisa que lhe viesse à mente. Já havia escurecido, poucas pessoas passeavam pela rua e o silêncio parecia ter ordenado veementemente a prisão de todo e qualquer ruído. Lúcia colocou seus pertences sobre a mesa, pegou a revista e deitou-se, retomando a leitura de onde parara.

O senhor pegou o homem pelo braço e, puxando-o, foi com ele até um banco de madeira. "A essa altura não há nada a fazer senão escutá-lo, Deus. Eu mereço mesmo isso!", pensava consigo o outro, acompanhando o desconhecido a contragosto, sem esboçar, todavia, sombra de reação qualquer. Sentaram-se ambos.
- Bem, como eu dizia, - retomou o velho - talvez seja importante pensarmos sobre o fato de que não sabemos se definitivamente as suas moedas possuem ou não dois lados distintos. Diga-me, já paraste alguma vez para analisá-las?
- Não, nunca - respondeu, curta e grossamente. Queria que aquilo acabasse logo para poder prosseguir seu caminho e não ter que ser incomodado daquela forma.
- Pois façamo-no agora, então. Dê-me todas as moedas que deixaste cair, por favor.
Não houve hesitação em obedecer por parte do outro. Se o sujeito quisesse levar-lhe aqueles míseros reais que assim o fizesse, contanto que não lhe atormentasse mais. Entregou-as todas a ele e aguardou. Por longos segundos nada foi dito. O senhor apenas olhava-as, virava-as uma por uma e soltava um grunhido ao passá-las de uma mão a outra depois do que aparentava ser uma vistoria. 
- Muito bom! - exclamou, parecendo muito contente - Todas elas possuem dois lados, mas...

- Lúcia, minha filha, você vai jantar? - gritou a mãe da ponta da escada.
A mulher assustou-se.
- Não sei, mãe. Já falo com a senhora.
Ela não estava a fim de passar aquela noite em casa, mas não refletira sobre isso até aquele momento. Pensou em ligar para Júlio, seu namorado; a vontade sumiu, no entanto, quase imediatamente. Queria algo diferente dessa vez. Talvez um restaurante. Um bar. Uma casa de show. Uma balada! Era isso mesmo. Não precisava nem ficar até o fim. Poderia só dançar um pouco e depois voltar. Que mal poderia fazer? Além disso, ninguém precisava saber. O problema era contar à sua mãe. Tentou achar uma saída, embora sua mente não estivesse contribuindo da forma que deveria. Leu mais um pouco, ainda que sem vontade alguma.

...Todas elas possuem dois lados, mas nem sempre reparamos nisso. Quando as vemos de relance ou não temos contato direto acabamos por não analisá-las e, portanto, esquecemos dessa característica fundamental, inerente a todo...

Uma idéia atingiu-lhe a mente como um míssil. E se contasse toda a história de Silvana e dissesse que iria sair para vê-la, simplesmente a fim de verificar se a amiga estava bem? Era uma boa mentira. Sua mãe provavelmente acreditaria e ainda daria o maior apoio. Era isso mesmo!

...inerente a todo metal que chamamos de moeda. Podemos chegar a pensar que já as conhecemos por completo se não as observarmos com atenção e cautela.

Fechou a revista e foi se trocar. Desceu as escadas depois de aproximadamente quinze minutos, falou tudo que planejara, explicando os mínimos detalhes do ocorrido e, exatamente como esperava, ganhou a permissão sem restrições de ir ajudar sua colega.
Quase cinco horas se passaram até que ela finalmente retornasse. Estava exausta, absolutamente cansada. Não encontrando sua mãe foi-se ao seu quarto e em pouquíssimos minutos após deitar-se em sua cama adormeceu.
No dia seguinte acordou sentindo uma enorme dor de cabeça e lembrando de pouca coisa. Sabia apenas que saíra para uma balada e..."meu Deus!". A exclamação não poderia ter sido mais alta. Se estava se lembrando corretamente dos fatos, isso significava que...
- Não, não pode ser! Não foi isso que aconteceu!
Naquele momento sua mente estava a mil. Não conseguia encontrar uma forma de negar as imagens que lhe vinham à visão. Seu olhar estava perdido. Avistou a revista que deixara no quarto na noite passada e decidiu lê-la, numa tentativa desesperada de cessar os pensamentos. Notou que ainda não terminara a história da noite passada e decidiu retomá-la.

O homem não via utilidade alguma naquilo tudo. 
- Sim, meu senhor. Mas o que isso muda na minha vida?
- Não disse que haveria de ocorrer mudança alguma. Apenas queria explicar-te sobre a importância de estarmos atentos às moedas que carregamos conosco. Dificilmente encontraremos uma com lados iguais, mas nem por isso devemos deixar de procurá-las. Dessa forma descobrimos mais sobre as que possuem lados diferentes que ainda não nos foram mostrados. Nem tudo aparece, nem tudo é visto. Muitas coisas ficam encobertas e por isso esquecemos de nos questionar se elas estão lá ou não. Na maioria das vezes, haverá sempre duas faces de uma mesma moeda. A questão é se temos conhecimento disso ou não.
Sem dizer mais uma palavra, o velho largou todas as moedas na mão do outro homem e saiu caminhando como se nada tivesse acontecido. O rapaz, em choque, levantou-se e seguiu seu caminho. Não entendera nada do que o velho dissera e arrependeu-se por ter lhe dado atenção e perdido tanto tempo com uma besteira daquelas, mas talvez ainda fosse cedo demais para sua mente trabalhar. Afinal, eram apenas sete horas da manhã.

Júlia terminou a leitura com a sensação de que aquilo não lhe servira para nada. "Eu com um baita problema e perdendo tempo com essa baboseira", disse para si mesma. Seu coração queria saltar-lhe pela boca, mas ela fez força para segurá-lo dentro de si.
Eram 6h59 quando olhou o relógio antes de sair de casa para o trabalho. Ainda não pensara como contaria à sua amiga que na noite passada mentira para sua mãe, fora a uma balada, bebera além da conta e beijara vários estranhos. Talvez fosse melhor não contar...
Na sua pressa acabou por deixar cair várias moedas no chão, abaixando-se rapidamente para pegá-las. Lembrou-se vagamente do que lera na revista. Reforçou em sua mente a opinião de que fora totalmente inútil e continuou seu caminho.