Indignou-se por completo. Como assim a sua melhor amiga traíra o namorado daquela forma? Como tivera coragem? "Uma garota tão bonita, tão inteligente, tão meiga e carinhosa...que diabos haveria ocorrido pra que ela cometesse tamanha besteira?", indagou-se. Por fim desistiu de seu aparentemente preciosíssimo silêncio e lançou-lhe algo para refletir:
- Você pelo menos pensou no que ele sentiria quando soubesse?
Silvana balançou a cabeça para os lados, espremendo levemente os lábios e encarando a outra moça.
- Não, Lúcia! Nessas horas nós não pensamos em nada. Só acontece, sabe? - desviou o olhar por breves instantes - A culpa veio depois mesmo.
- Como assim "a culpa veio depois"? - disse em voz alta, assustando-se um pouco com seu próprio tom - Será que o tempo com o outro não foi suficiente pra te fazer refletir sequer por um segundo? Faltou cérebro na hora ou os pensamentos simplesmente foram embora? Não é possível, meu Deus! - colocou as mãos em sua cabeça e deu meia volta, olhando para o teto do refeitório - Onde esse mundo vai parar?
- Nossa! Esperava um pouco mais de apoio, pelo menos!
Silvana falava com a cabeça abaixada, os olhos cheios de água e uma voz apertada que parecia não desejar sair de sua boca. Esforçou-se e conseguiu um argumento em sua defesa.
- Acontece com muita gente, Lúcia! Eu não fui a primeira e nem serei a última, te garanto!
- Ahhhh, - irritou-se por fim, virando-se rapidamente e encarando a amiga nos olhos - não me venha com essa, de forma alguma! Isso é sacanagem, safadeza, falta de caráter, coisa de quem...
- De quem o quê? - gritou Silvana - Hein?! Vai dizer que nunca errou com ninguém, que é uma santa? Você não é nem um pouco melhor que eu, minha filha, tenha certeza!
- Nesse ponto te garanto que sim! Nunca trairia alguém, nunca mentiria para uma pessoa que amo! Isso não se faz, Silvana, de forma alguma! Não esperava uma atitude dessas vinda de você. E, - prosseguiu, interrompendo com um gesto a amiga que já reiniciaria seu discurso - espero que você tenha decência suficiente pra contar ao Flávio tudo que aconteceu. Enquanto não fizer isso não espere nada de mim, entendeu?
Sem parar para aguardar uma resposta pegou sua bolsa e saiu da sala, deixando a amiga sozinha. Aquela poderia não ter sido a melhor coisa a se fazer, pensou, mas não havia outra opção. Seria totalmente errado compactuar com o erro de Silvana e, portanto, não devia, de maneira nenhuma, falar dócil e calmamente com ela. Tinha que mostrar rigidez, opinião forte e imutável. Era isso mesmo! Estava certíssima e veria futuramente os bons frutos de sua decisão.
No caminho para sua casa, sentada no banco do ônibus, abriu uma revistinha há muito guardada em sua bolsa, dessas que compramos pela simples vontade efêmera de gastar dinheiro, e começou a folheá-la. Uma pequena história chamou-lhe a atenção e decidiu lê-la por completo.
"As duas faces da moeda"
O homem caminhava pela rua calmamente quando, ao tentar pegar uma bala dentro de seu bolso, deixou cair uma porção de moedas no chão; estas, todavia, não foram muito longe, parando a poucos centímetros do pé do sujeito. Quando ia abaixar-se para recolhê-las uma voz o assustou.
- Não, não faça isso!
Olhou rapidamente para a fonte daquela fala e viu um senhor baixo, de cabelos grisalhos e barba mal feita. Vestia-se malmente, como se usasse roupas apenas para cobrir sua nudez, não as vendo como algo realmente importante.
- Essas moedas são suas? - perguntou o estranho.
- S-sim. São minhas. Acabei de deixá-las cair sem querer.
Ao terminar de responder, o rapaz já ia se agachando novamente, mas foi interrompido pela mão do indivíduo ao seu lado.
- Espere um momento, cavalheiro!
- Esperar pelo quê? - falou, começando a irritar-se com a situação. Queria somente recolher seus pertences e prosseguir seu caminho, sem que para tanto precisasse ser importunado por um velho chato e desconhecido.
- Vejamos...
O outro homem ajoelhou-se no chão e começou a olhar as moedas enquanto falava baixo consigo mesmo. As poucas pessoas ao redor olhavam a cena com certo repúdio, mas, para manter a classe, fingiam estar ocupadas demais com suas próprias vidas e, portanto, serem indiferentes à situação. O dono do dinheio estava prestes a largar tudo aquilo ali mesmo e ir embora, pensando que talvez aquele senhor fosse um mendigo querendo arranjar pretexto para roubá-lo. Quando ia dar o primeiro passo, entretanto, o estranho falou:
- Interessante! Muito interessante mesmo!
Recolheu todas as moedas e devolveu-as ao proprietário. Encarou-o por breves segundos, refletiu e pousou sua mão sobre o ombro do homem.
- Concederia-me a honra de sentar-se um momento comigo? - pediu gentil e simpaticamente - Todo esse ocorrido fez-me pensar sobre algo que até então eu não refletira a respeito...queria compartilhar meu pensamento com alguém. Que me dizes?
Nesse momento um homem que passava no corredor deixou acidentalmente sua bolsa esbarrar em Lúcia, desculpando-se imensamente em seguida. Ela não se importou, mas o incidente fizera a revista cair de suas mãos e agora não conseguia encontrá-la. Estava começando a ficar irritada quando recebeu um cutucão em suas costas.
- Senhora, creio que isso seja seu.
Ela olhou rapidamente para a mão da pessoa que lhe chamara a atenção e viu sua revista, ficando feliz e agradecendo entusiasticamente.
- Não foi nada. - disse o homem - Aliás, essa revista é excelente! Pena que muita gente não a compra ou, se o fazem, deixam-na jogada em uma gaveta ou bolsa sem jamais ler uma página sequer.
Lúcia sorriu ligeiramente tímida e concordou com a cabeça. Virou-se para a frente novamente, o coração quase imperceptivelmente acelerado, abriu na página que estava antes de toda aquela confusão e passou os olhos pelas linhas até encontrar onde parara. Olhou pela janela para certificar-se de que ainda faltava um pouco para chegar ao seu destino e retomou a leitura.
O homem hesitou por alguns instantes. E se aquele cara quisesse fazer-lhe algum mal? Coisa boa não poderia ser, pensou. "É melhor eu agradecer, ir embora e deixar esse maluco pra trás antes que aconteça o pior", disse a si mesmo.
- Obrigado, senhor, mas eu estou com um pouco de pressa. Se não se importa, eu gostaria de...
- Pois me importo, claro! Custar-te-ia um olho ou muito dinheiro doar um pouco do teu tempo para bater um papo com um pobre e sozinho velho? Que há convosco, pessoas atarefadas e impacientes, que ignoram a presença de tudo aquilo que aparentemente não vos diz respeito?
O homem não soube o que responder. Melhor era não estender o papo e sair adando rápido. Se a situação piorasse, certamente correria. Foi parado novamente, todavia.
- Far-te-ei uma pergunta somente. - disse o outro - Se não quiseres respondê-la poderás ir embora, mas caso digas algo quererei debater contigo a questão e terás de fazê-lo. Aceitas?
Não, não aceitava. Só não teve tempo de dizê-lo.
- Pois bem. Viste quando tuas moedas caíram, certo?
O rapaz nada disse.
- Bem, quem cala consente, deste modo tomo um "sim" como resposta a isso. Espero que saibas, logicamente, que todas as moedas possuem dois lados.
É claro que sabia. A pergunta o deixara ainda mais nervoso por sua obviedade.
- Mas a questão não é essa. Poderias me assegurar, sem sombra de dúvida, que suas moedas possuem dois lados diferentes? Poderias afirmar categoricamente que todas elas possuem um lado "cara" e outro "coroa" e que nesse monte em teu bolso agora não há uma sequer que tenha duas "caras" ou duas "coroas"?
- Claro que sim! - respondeu imediatamente o homem, visivelmente transtornado. Toda moeda tem necessariamente dois lados diferentes!
- Aceitaste nosso acordo, então, pois deste-me uma resposta. - falou, abrindo um leve e disfarçado sorriso. Prosseguirei meu raciocínio.
Com um sobressalto Lúcia percebeu que seu ponto chegara. Fechou rapidamente a revista, enfiou-a apressadamente na bolsa e levantou-se do banco em disparada, quase correndo até a porta do ônibus. Deu sinal quase em cima da hora; menos de cinco segundos depois o veículo parou, abriu suas portas e a moça desambarcou. Pensou na história, mas seus pensamentos foram invadidos pela lembrança de sua discussão com Silvana. Não sentiu remorso algum, apenas preocupou-se por não saber como estariam as coisas àquela hora.
Chegou em casa, cumprimentou sua mãe com um beijo estalado no rosto e foi logo para seu quarto. Planejava terminar a história sentada na cama e depois fazer qualquer coisa que lhe viesse à mente. Já havia escurecido, poucas pessoas passeavam pela rua e o silêncio parecia ter ordenado veementemente a prisão de todo e qualquer ruído. Lúcia colocou seus pertences sobre a mesa, pegou a revista e deitou-se, retomando a leitura de onde parara.
O senhor pegou o homem pelo braço e, puxando-o, foi com ele até um banco de madeira. "A essa altura não há nada a fazer senão escutá-lo, Deus. Eu mereço mesmo isso!", pensava consigo o outro, acompanhando o desconhecido a contragosto, sem esboçar, todavia, sombra de reação qualquer. Sentaram-se ambos.
- Bem, como eu dizia, - retomou o velho - talvez seja importante pensarmos sobre o fato de que não sabemos se definitivamente as suas moedas possuem ou não dois lados distintos. Diga-me, já paraste alguma vez para analisá-las?
- Não, nunca - respondeu, curta e grossamente. Queria que aquilo acabasse logo para poder prosseguir seu caminho e não ter que ser incomodado daquela forma.
- Pois façamo-no agora, então. Dê-me todas as moedas que deixaste cair, por favor.
Não houve hesitação em obedecer por parte do outro. Se o sujeito quisesse levar-lhe aqueles míseros reais que assim o fizesse, contanto que não lhe atormentasse mais. Entregou-as todas a ele e aguardou. Por longos segundos nada foi dito. O senhor apenas olhava-as, virava-as uma por uma e soltava um grunhido ao passá-las de uma mão a outra depois do que aparentava ser uma vistoria.
- Muito bom! - exclamou, parecendo muito contente - Todas elas possuem dois lados, mas...
- Lúcia, minha filha, você vai jantar? - gritou a mãe da ponta da escada.
A mulher assustou-se.
- Não sei, mãe. Já falo com a senhora.
Ela não estava a fim de passar aquela noite em casa, mas não refletira sobre isso até aquele momento. Pensou em ligar para Júlio, seu namorado; a vontade sumiu, no entanto, quase imediatamente. Queria algo diferente dessa vez. Talvez um restaurante. Um bar. Uma casa de show. Uma balada! Era isso mesmo. Não precisava nem ficar até o fim. Poderia só dançar um pouco e depois voltar. Que mal poderia fazer? Além disso, ninguém precisava saber. O problema era contar à sua mãe. Tentou achar uma saída, embora sua mente não estivesse contribuindo da forma que deveria. Leu mais um pouco, ainda que sem vontade alguma.
...Todas elas possuem dois lados, mas nem sempre reparamos nisso. Quando as vemos de relance ou não temos contato direto acabamos por não analisá-las e, portanto, esquecemos dessa característica fundamental, inerente a todo...
Uma idéia atingiu-lhe a mente como um míssil. E se contasse toda a história de Silvana e dissesse que iria sair para vê-la, simplesmente a fim de verificar se a amiga estava bem? Era uma boa mentira. Sua mãe provavelmente acreditaria e ainda daria o maior apoio. Era isso mesmo!
...inerente a todo metal que chamamos de moeda. Podemos chegar a pensar que já as conhecemos por completo se não as observarmos com atenção e cautela.
Fechou a revista e foi se trocar. Desceu as escadas depois de aproximadamente quinze minutos, falou tudo que planejara, explicando os mínimos detalhes do ocorrido e, exatamente como esperava, ganhou a permissão sem restrições de ir ajudar sua colega.
Quase cinco horas se passaram até que ela finalmente retornasse. Estava exausta, absolutamente cansada. Não encontrando sua mãe foi-se ao seu quarto e em pouquíssimos minutos após deitar-se em sua cama adormeceu.
No dia seguinte acordou sentindo uma enorme dor de cabeça e lembrando de pouca coisa. Sabia apenas que saíra para uma balada e..."meu Deus!". A exclamação não poderia ter sido mais alta. Se estava se lembrando corretamente dos fatos, isso significava que...
- Não, não pode ser! Não foi isso que aconteceu!
Naquele momento sua mente estava a mil. Não conseguia encontrar uma forma de negar as imagens que lhe vinham à visão. Seu olhar estava perdido. Avistou a revista que deixara no quarto na noite passada e decidiu lê-la, numa tentativa desesperada de cessar os pensamentos. Notou que ainda não terminara a história da noite passada e decidiu retomá-la.
O homem não via utilidade alguma naquilo tudo.
- Sim, meu senhor. Mas o que isso muda na minha vida?
- Não disse que haveria de ocorrer mudança alguma. Apenas queria explicar-te sobre a importância de estarmos atentos às moedas que carregamos conosco. Dificilmente encontraremos uma com lados iguais, mas nem por isso devemos deixar de procurá-las. Dessa forma descobrimos mais sobre as que possuem lados diferentes que ainda não nos foram mostrados. Nem tudo aparece, nem tudo é visto. Muitas coisas ficam encobertas e por isso esquecemos de nos questionar se elas estão lá ou não. Na maioria das vezes, haverá sempre duas faces de uma mesma moeda. A questão é se temos conhecimento disso ou não.
Sem dizer mais uma palavra, o velho largou todas as moedas na mão do outro homem e saiu caminhando como se nada tivesse acontecido. O rapaz, em choque, levantou-se e seguiu seu caminho. Não entendera nada do que o velho dissera e arrependeu-se por ter lhe dado atenção e perdido tanto tempo com uma besteira daquelas, mas talvez ainda fosse cedo demais para sua mente trabalhar. Afinal, eram apenas sete horas da manhã.
Júlia terminou a leitura com a sensação de que aquilo não lhe servira para nada. "Eu com um baita problema e perdendo tempo com essa baboseira", disse para si mesma. Seu coração queria saltar-lhe pela boca, mas ela fez força para segurá-lo dentro de si.
Eram 6h59 quando olhou o relógio antes de sair de casa para o trabalho. Ainda não pensara como contaria à sua amiga que na noite passada mentira para sua mãe, fora a uma balada, bebera além da conta e beijara vários estranhos. Talvez fosse melhor não contar...
Na sua pressa acabou por deixar cair várias moedas no chão, abaixando-se rapidamente para pegá-las. Lembrou-se vagamente do que lera na revista. Reforçou em sua mente a opinião de que fora totalmente inútil e continuou seu caminho.
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
Um comentário:
Primeiramente, obrigado por tomar a iniciativa de comentar. Isso ajuda muito a construir o blog. Em segundo lugar, é importante lembrar que tanto você, a partir do momento em que opta por escrever aqui, quanto eu somos responsáveis pelo que se veicula nessa página. Portanto, reflita sobre aquilo que comunicará.
Excetuando ofensas pessoais, incitação ao ódio e ao preconceito e/ou discriminação sintam-se livres para falar tudo que desejarem e, se assim quiserem, derramarem todas as críticas que tiverem.
Mais uma vez, muito obrigado.
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Por que você escreve tanto? D:
ResponderExcluirE bem, ainda por cima???
Bruna Alves.