quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Desistir?

Lembro que há alguns meses postei aqui o texto "autobiografia temporária de um guerreiro". Àquela época a vida parecia ter mudado para sempre, como se nada mais fosse voltar a ser como era antes. Tinha pra mim que dali em diante tudo seria diferente; um segundo divisor de águas na minha existência. O tempo passou e esse pensamento se manteve forte o suficiente pra me dar toda a esperança que eu precisava. Porém, de uns dias pra cá ele começou a mudar, cambalear e hoje, depois de dois simples acontecimentos - e mais outros não tão significativos -, parece ter caído por terra. Longe de querer fazer drama, de jogar hipérboles ao vento sem necessidade, eu voltei a pensar em desistir. Em desistir de tudo, em por um fim a tudo. A esperança de dias melhores, nesse exato instante, parece ter ruído e eu agora estou novamente perdido. Pensei estar caminhando, indo em frente, mas agora não sei mais se me estava enganando ou não. E eu não consigo conter o nó na garganta, não consigo abafar o sufoco no meu peito, as lágrimas que me tiram o ar e a sensação de que não há mais o que fazer. Se me fosse concedido um desejo agora eu talvez prontamente dissesse que queria sumir, evanescer, desaparecer sem deixar rastros, fazer desse meu lugar no mundo um livro que nunca existiu. E isso dói, dói a dor que não desejo à pessoa mais sem escrúpulos que pisa essa Terra. E eu juro que não sei o que fazer, eu juro que um cego em um tiroteio saberia muito melhor pra onde ir que eu.
Acho que só tenho a pedir perdão a todos que machuquei e aos que ainda hei de ferir. Acho que só tenho desculpas a dar para mim mesmo, pretextos, esvaziados de qualquer verdade, para dar um passo à frente. Porque tudo que quero é desistir, tudo que desejo é não sentir mais essa dor esmagando minha alma. Porque ela dói, dói mais que qualquer outra que eu já tenha sentido; é a dor da esperança perdida pela segunda vez. E agora eu não sei se resisto, não posso assegurar a mim mesmo ou a quem quer que seja que conseguirei acreditar que conseguirei levantar uma vez mais. Me sinto sem forças. É como se tudo que eu tivesse arduamente construído desmoronasse diante de mim, em cima de mim, e eu não enxergasse uma saída. Enfatizando que não tenho a intenção de fazer drama, quero pedir perdão se eu abandonar a batalha, se eu me der por vencido, se me render pela incapacidade de superar esse demônio que me pisoteia. Meu ser é cheio de feridas, muitas superficiais que ainda tento tratar e outras muito profundas, que parecem ter agressiva e incontravelmente emergido no instante em que digito essas palavras.
Eu amo muito todos vocês, vou sempre amar, por mais que eu talvez nunca tenha sabido o significado dessa palavra. Acho que não dá mais pra mim, acho que não há qualquer resquício de fé dentro de mim. Se há, não consigo encontrá-lo agora. E acho que vou ter de deixá-los. Acho que terei de partir, seja da forma que for. E peço perdão por isso também, porque o buraco deixado por alguém que se vai também abre uma ferida. Mas eu confio em vocês, sempre confiei, e sei que saberão lidar com essa possível perda. Talvez eu simplesmente vá para longe, onde ainda se pode alcançar por terra, água ou ar. Talvez eu vá além, onde vocês ainda não estão. Talvez fique por aqui mesmo. Eu não sei, não sei de nada. Só queria algo que fizesse essa dor parar. Daria qualquer coisa por isso. Eu não a quero de volta, não quero tê-la em mim uma vez mais. Talvez amanhã eu acorde e tudo isso que escrevi pareça idiota, mas talvez não. Mais uma vez: não sei. Só me perdoem por tudo que não fui, por todas as minhas falsas promessas, pelos desapontamentos, pelas vezes que ignorei o que de bom grado me fora dado, por tudo que pareci ser sem realmente ser, por todos os meus tropeços e pisões nos seus pés. Não quero ninguém desesperado, me ligando ou me procurando. Preciso de tempo, seja ele do tamanho que for. Se eu me afastar é porque acho necessário. Se me aproximar é pelo mesmo motivo. Mas eu imploro que não venham tentar me confortar; isso só vai tornar tudo ainda mais doloroso. Me deem um tempo. Caso eu decida por desistir deixarei todos avisados. Caso eu mude de ideia, ignorem tudo isso que leram até agora. Não esperem qualquer coisa de mim nesse momento. Estou quebrado e meus minúsculos pedaços estão espalhados por aí. Preciso decidir se os quero de volta, preciso ter certeza de que quero me reconstruir. Tempo é a palavra-chave no meio desse furacão. Como canta a Pitty "Tenta achar que não é assim tão mal, exercita a paciência. Guarda os pulsos pro final, saída de emergência". E seguirei as palavras dela. Por hora, as coisas ficam na incerteza. Vou desaparecer mais do que já tenho feito - conste que isso também é um "talvez"-, mas quiçá eu retorne em breve ou daqui certo tempo. Uma vez mais, por favor, sem dramas ou desesperos. Não estou escrevendo isso pra assustar ninguém (ainda que eu saiba que esse será o efeito para muitos), apenas quero dizer o que se passa comigo nesse instante. Sou um guerreiro, mas nem sempre os guerreiros ganham a guerra. Digamos que eu me retirei do campo por enquanto e ainda preciso pensar se voltarei ou não.
Como eu disse, talvez amanhã nada disso faça sentido algum, mas agora, às 3h46 do dia 06 de fevereiro de 2013, é a maior verdade que tenho a expor. E se você recebeu esse texto é porque é importante para mim. E, novamente, peço que respeite esse meu tempo, que não toque no assunto, que não pergunte se estou bem ou mal. Pode me julgar, achar o que quiser, dizer o que quiser. Se achar válido, jogue todas as suas pedras, diga que estou de frescura ou coisa do tipo. O importante é que quando eu tiver um parecer tratarei de deixá-lo claro a cada um de vocês, mesmo que não queiram mais olhar na minha cara. Cada um faz suas escolhas e eu ainda estou analisando minhas opções antes de fazer as minhas próprias. Se tiverem um tempinho a mais, ouçam "Lost In Paradise", do Evanescene. Explica muito o que sinto.

Sem mais,
Vinicius Medeiros dos Santos

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O ciclo do amor

João amava Maria. Maria amava Pedro. Pedro amava Fernando. Fernando amava Lúcia. Lúcia... bem, Lúcia, coitada, nem sabia o que era amor. Ninguém ocupava qualquer espaço em seu coração. Tudo bem, não sejamos mentirosos; Lúcia tinha amor pelo seu cachorro, Pardo, e nesse caso o sentimento era recíproco. Ou pelo menos parecia ser. Difícil discutir os sentimentos de um animal, pois o ser em questão não pode dizê-los. Ainda assim, ela acreditava ser correspondida pelo pequeno mostrengo de quatro patas. Baseava sua fé nas lambidas que levava na cara e na festa que o bicho fazia quando ela chegava em casa, depois de um longo e exaustivo dia de trabalho. Lúcia estava longe de ser rica, mas isso não a perturbava. Vivia muito bem, obrigada, em seu apartamento de 37 m2 e nem lhe passava pela cabeça ter algo maior. Casa grande dava trabalho, pensava, e já lhe bastava a escravidão que vivia como secretária, o chefe chato que lhe atormentava com cobranças quase que de hora em hora, os clientes metidos que pensavam serem os donos do mundo e, pra completar, a ausência de ar-condicionado na recepção - isso pode até parecer supérfluo, mas vestir traje social num escritório abafado, com a temperatura lançando-lhe seus 36ºC não é desafio para qualquer um. Ainda assim, melhor aquilo que nada.
No auge de seus 24 anos mal sabia o que era universidade. Terminara o ensino médio a duras penas. Era órfã, ou quase isso. Seus pais, numa ensolarada manhã de domingo, deixaram-na com a avó para, teoricamente, ir à feira no interior e comprar alguns itens de decoração para a casa. "Isso aqui está muito morto. Olha essa sala! Parece uma mistura de nada com merda nenhuma. Dá até depressão. Quero cor, muita cor!", dizia a mãe praticamente todos os dias, quase como uma reza ou um mantra. O pai, por sua vez, contentava-se em assentir com a cabeça e fingir concordar com a mulher. "Fosse como fosse, não haviam de ficar muito por lá". Como eu disse antes, numa bela manhã ensolarada de domingo ambos saíram para comprar coisas novas para a casa. Essa era a dita intenção, no entanto, na prática, nunca mais retornaram. Sabe-se lá onde se enfiaram. Fato é que nem a polícia conseguiu encontrá-los. Mais um dos muitos mistérios que atormentam a humanidade - ou, pelo menos, uma parte ínfima da mesma. Lúcia passou a viver com a sua avó, Madalena, uma senhora beirando os 90 anos e com todos os "cri-cris" de uma pessoa em sua idade. Chata que só, mas pelo menos cozinhava maravilhosamente bem. Um anjo com a comida, um demônio com as pessoas.
Cinco anos mais tarde, quando Lúcia já tinha 19 anos e cursava o primeiro ano do antigamente chamado colegial, um AVC fatal levou a velha embora do mundo dos mortais. A garota viu-se sozinha, forçada a cuidar de si própria. Usou suas parcas economias, endividou-se com três ou quatro empréstimos e finalmente conseguiu um emprego como servente num desses fast-foods da vida. Mudou-se para o apartamento em que hoje vive, numa rua quase bonita de dia, porém medonha depois do soar do sino da igreja, às 18h. Quatro meses depois livrou-se de dois dos empréstimos que fizera - os de menor valor, diga-se de passagem - e resolveu se dar o luxo de adotar um cachorrinho. Desde pequena lhe agradavam os animais, ainda que seus pais nunca a tivessem permitido ter mais que um pequeno aquário com um peixe beta. A vida parecia, então, caminhar um pouco; agora tinha emprego, um lar, menos dívidas e um companheiro peludo babão que vivia a roer os móveis velhos e mofados que Lúcia comprara no mercado informal.
Mais alguns anos transcorreram até que chegássemos ao momento citado no começo de nossa história. A moça pediu demissão do emprego de garçonete, formou-se no ensino médio e começou a trabalhar no escritório do senhor Rubens. O novo salário não chegava sequer perto dos quatro dígitos, mas servia. Como já sabemos, Lúcia não era uma mulher de grandes ambições. Mais dinheiro não lhe interessava e nem estava disposta a batalhar muito por um cargo melhor. Não que gostasse do que fazia ou tivesse algum carinho por seu chefe; simplesmente chegara à conclusão que os penosos meios talvez não valessem os não tão gloriosos fins. "Em time que está ganhando não se mexe", dizia a si mesma. E assim seguia sua vida, entre escândalos do patrão e a baba de seu cão. Tudo muito normal, muito rotineiro. Às vezes alguns gritos lhe acordavam no meio da noite. Vinham de sua rua, de mulheres sendo assaltadas ou pessoas aleatórias brigando. Contudo, isso também era quase uma rotina; acontecia mais ou menos de três em três dias, como já havia calculado. No escritório, entretanto, voz alta e palavrões equivaliam a "Bom dia. Tudo bem?". Quando já havia se habituado, um incidente inesperado se chocou contra sua realidade. Aliás, todos sabemos por experiência que a vida sempre, quando excessivamente entediada, encontra um jeito de sair do marasmo maçante na qual tentamos colocá-la. Bem, deixe-me explicar melhor o ocorrido.
Numa segunda chuvosa e gélida, Lúcia fazia seu trabalho habitual. O relógio contava, um tanto quanto apressado, 9 ou 8 minutos restantes para as onze da manhã. Ela, porém, digitava calmamente, quase como se estivesse caçando migalhas entre as teclas. Foi quando um homem, muito mais apressado que o relógio, entrou correndo na recepção, parando de súbito no balcão de Lúcia.
- O doutor Rubens se encontra? - perguntou ofegante.
Lúcia, um tanto desbaratinada, tratou de responder-lhe sem delongas.
- Não. Já deveria estar aqui, mas a chuva deve tê-lo atrasado.
- Puta que pariu, que sorte do caralho que eu tenho! - gritou o homem, exibindo uma expressão de descomunal alívio.
- Perdão, - interrompeu ela, um tanto constrangida com o palavreado do rapaz - gostaria de deixar recado?
- Não, não. Não precisa. Vou aguardá-lo aqui mesmo.
Sem pestanejar, o rapaz, que vestia camisa verde-musgo e calça social preta, puxou uma cadeira para si.
- Você não tem ideia da merda de tempo que está lá fora! - falou ele, puxando assunto sem a consciente intenção de fazê-lo. A cidade está um caos absoluto. Mal dá pra dirigir ou andar na rua. E pra completar - e aqui ele elevou um pouco a voz, adicionando a ela um certo tom de raiva - um filho da puta passou perto de mim com aquela bosta de carro e molhou minha calça inteira.
Ele segurou com força a barra da perna direita e mostrou a ela, que olhou rapidamente, como que por educação, e logo voltou sua atenção à sua tarefa. Absolutamente presumível que a minúscula experiência em lidar com pessoas deixava-a excessivamente transtornada nos momentos em que precisava fazê-lo. Nunca tivera o que se pode chamar de "relações sociais". Nenhuma amiga, pais praticamente inexistentes. Sua experiência mais íntima e profunda era certamente a que tinha com seu cachorro.
- E o seu nome, moça, qual é?
- Lu-luci-lúcia. É Lúcia, senhor - respondeu de imediato.
- Ora, - falou ele, levantando-se instantaneamente - não precisa ficar com vergonha, Lúcia. Eu não mordo, - prosseguiu, apoiando-se sobre o balcão da recepção - prometo! Aliás, só mordo, mas ainda bem de leve, se você pedir com jeitinho.
Ele mordeu o lábio inferior e esboçou um sorriso sedutor. Lúcia pregou os olhos na tela do computador como se o próprio Diabo estivesse de pé ao seu lado e a simples ideia de olhar para ele atemorizasse cada fio de cabelo seu. Manteve-se calada, a respiração ofegante contida e o coração batendo mais rápido que o normal. Olhou furtivamente para o relógio só para constatar que a conversa toda havia levado menos de quatro minutos. Quatro minutos que lhe tinham passado como quatro horas.
- E não vai perguntar meu nome, querida? - falou o homem, inclinando-se mais sobre o balcão para olhá-la mais de perto.
- Qual é o seu nome?
- Por que não olha nos meus olhos pra perguntar isso?
Lúcia não queria, mas fez como o rapaz havia pedido. Antes que possamos prosseguir, acho de grande importância falar sobre os olhos dele. Não eram azuis, menos ainda verdes. Escuros também não. A cor ficava entre castanho claro e castanho médio, pendendo mais para o primeiro. Pareciam duas castanhas pequenas e perfeitamente esculpidas. A pupila dilatada deixava-os com um aspecto mais profundo, como se pudesse penetrar no mais recôndito canto da alma de Lúcia e escrutinar tudo que ela sequer sabia pensar. Como fortes ondas misturadas à areia da praia, arrastaram a pobre mulher sem dar-lhe tempo de nadar ou gritar por socorro. Ao recobrar parte de sua consciência, ela se encontrava encarando o homem, imersa num silêncio quase fúnebre e inquebrável. Percebeu o papelão que deveria estar passando e agiu o mais rápido que seu cérebro conseguiu ordenar.
- Perdoe minha falta de educação, senhor. É que estou tão atarefada com as coisas que seu Rubens me pediu... Mas então, qual seria seu nome?
E agora, precisamente quando Lúcia conseguira respirar melhor, o papo foi bruscamente interrompido. Seu patrão adentrou a sala numa visível pressa. Ao avistar o homem que o esperava, não tardou a despejar cortesias sobre ele. Nada constrangido, o rapaz ignorou a presença da recepcionista e chamou Rubens para que fossem para a sala deste, pois precisavam "ter uma conversa séria e inadiável". Ambos dirigiram-se ao mencionado lugar e Lúcia retornou à sua deprimente solidão. Mesmo assim, já não sentia estar tão só. O perfume do rapaz ainda impregnava o local, sua voz marcante e despojada ecoava pela sala, seus olhos, arrebatadores e inesquecíveis, pareciam ainda obervá-la. Quando se deu conta, o estrago já estava feito. A imagem do homem ficara gravada em sua mente, coisa que, ao seu ver, não deveria estar acontecendo.
Bem, acho que você, caro leitor ou leitora, há de concordar comigo em um ponto: coração acelerado e lembrança insistente da imagem de uma pessoa, assim como de sua voz, cheiro e personalidade são indícios de um distúrbio gravíssimo. Geralmente os sintomas persistem por semanas, meses ou até anos e a parte mais desesperadora é saber que nenhum médico ou guru pode curar a doença que chamamos de amor - ou paixão, se assim lhe soar melhor. Descargas de adrenalina, endorfina, oxitocina, serotonina, vasopressina, dopamina, entre outros, viciam o organismo e te fazem desejar o objeto amado cada vez mais. Claro que Lúcia nem fazia ideia de todo esse processo químico ocorrendo freneticamente em seu corpo e optou por jogar a culpa do problema, após dias de divagação, no "estúpido coração". Pobre órgão esse, tantas vezes injustamente acusado por atos perpetrados pelo cérebro, a mesma massa cinzenta que insistimos em idolatrar como um símbolo de racionalidade.
O tempo passou, correu, voou e a pobre moça viu seu quadro se agravar ainda mais. Começou a sonhar com o rapaz, ver a face dele nos rostos de outros homens, sentir a presença e o toque dele - ainda que esse último não tivesse tido a oportunidade de experimentar - e, em dado momento, percebeu que estava até falando do dito cujo para seu cachorro. Foi nessa hora que ela entendeu a necessidade urgente, alarmante, inevitável de tomar uma atitude em relação àquele fogo queimando em seu peito. "Da próxima vez que o vir, puxarei assunto. Quero passar essa história a limpo", afirmou veementemente. Ao contrário de muitas promessas que fazemos durante nossa longa breve vida, essa foi de fato levada a cabo, ainda que não da forma planejada.
No dia seguinte, mais precisamente um sábado, aguardou ansiosamente pela chegada do homem. "Primeiro perguntarei o nome dele, depois o chamarei para comer alguma coisa assim que meu expediente terminar". "Não, não posso fazer isso! Onde estou com a cabeça? Ele é maluco, fala palavrões. Não está certo." "Mas e se ele corresponder? E se estiver pensando em mim, nas mesmas coisas que eu? Pode ser que sinta minha falta, pode, sim." "Cala a boca, Lúcia! Que coisa mais sem cabimento. Você nunca ficou assim por alguém, não é hoje que vai começar." "Mas eu não perco nada em tentar, posso até conseguir algo além de um cumprimento. "Vai conseguir no máximo uma bela risada de deboche, isso sim! Quando que um homem daqueles vai olhar pra uma mera secretária feia igual a você?" "E se ele olhar? E se ele quiser me conhecer melhor? "Te conhecer melhor? Você acha mesmo que tem tanta coisa assim pra oferecer?" "Acho que vale a pena dar uma chance a mim mes...
- Lúcia, Lúcia? Quê que você tem, mulher? Ficou surda ou está se fazendo de idiota, hem?
O senhor Rubens estava parado à sua frente, com o rosto enrugado e uma expressão de buldogue ameaçador.
- Responde, minha filha! O gato comeu sua língua por algum acaso?
- Não, não. Perdão, senhor, é que ontem na minha rua aconteceu um...
- Eu lá quero saber o que acontece ou deixa de acontecer na sua vida? Toma! Quero tudo isso digitado pra ontem!
Ele colocou - melhor dizendo, jogou - uma pilha de papéis no balcão da recepção e deixou o escritório com sua postura arrogante corriqueira.
- Ai, só essa que me faltava - resmungou. Esse velho chato vir me dar ainda mais trabalho. Revirou a pilha e percebeu que as páginas eram infinitas. Vou ficar aqui até amanhã fazendo isso.
Ela deitou a cabeça sobre o teclado, desolada. Droga de emprego, droga de vida, droga de Rubens, droga de...
- Olá! O senhor Rubens está?
Aquela voz, o perfume... Não, não podia ser. Era, era, era... quem era mesmo? Qual era o nome dele, meu Deus? Lúcia ergueu a cabeça. Tentou se ajustar na cadeira, mas levou um baita tombo.
- Calma, Lúcia! Vem, eu te ajudo.
O homem pegou nos braços dela e ajudou-a a levantar. Os olhos, os olhos...
- Eu consigo sozinha! - gritou, arrependendo-se logo em seguida.
- Nossa, pra que tanta grosseria? Só quis ajudar!
A loucura lhe tomou de vez.
- Ajudar o cassete! Você quer é acabar com a minha vida, isso sim! Sabia que faz quatro semanas que não tiro você da cabeça? Que sonho contigo todas as noites? Que te vejo andando na rua quando você nem está lá? Que fico falando de você para meu cachorro? Mas você fica aí com essa prepotência toda e eu sou uma estúpida, uma idiota por sentir essas coisas. Claro que você nunca vai olhar para mim! Onde é que eu estou com a cabeça? Nem o seu nome eu sei, nem isso! O senhor Rubens saiu, foi embora, morreu! Agora vá embora também antes que eu lhe meta um tapa no meio da cara pra largar de ser imbecil.
O homem estava estático. Lúcia tombou na cadeira e se pôs a chorar descontroladamente. Ele não sabia o que fazer, então apenas se aproximou e lhe deu um abraço. Nesse momento, ela praticamente morreu e ressuscitou. Primeiro porque jamais havia recebido um abraço tão sincero, segundo porque não estava preparada para aquilo e terceiro... Ah, de que importa? Estava bem e isso era o bastante.
- Mas que palhaçada é essa aqui?
- Rubens, eu posso explicar. Ela caiu da cadeira e eu fui ao seu socorro. Ela poderia ter se machucado ou coisa do tipo.
- É uma inútil essa mulher! Tá chorando ainda por cima? Com tanta coisa pra fazer e ainda fica com melindres?
Uma explosão de raiva, angústia, ódio, tristeza, desespero, sentimento de inferioridade e um nó na garganta sufocante tomaram conta dela e sua primeira reação foi se pôr de pé e sair correndo desvairadamente para a rua. Começava a chover. Seu cabelo se desfez, a chuva piorou, sua maquiagem borrou e seus olhos, vermelhos, derramavam cascatas de lágrimas. Ela não conseguia sequer respirar. Foi então que duas mãos lhe agarraram, puxando-na para debaixo de um toldo.
- Você ficou maluca? Por que disse tudo aquilo?
- Porque é a verdade! Essa merda de emprego, merda de vida, - ela falava soluçando de tanto chorar - merda de chefe... Eu mesma sou uma merda!
- Para com isso, mulher! Parece que tem problema mental.
- Meu maior problema é você! A vida já estava uma grande bosta e aí você resolveu aparecer nela, com esse charme todo. Eu estou falando palavrões, coisa que nunca fiz, e nem o seu nome eu sei!
- É João.
Ela se calou. Se afundou nos olhos dele, observou a sua volta e disparou em direção à sua casa. Nem quis olhar para trás. "Por que comigo?". Chegou ao seu prédio, subiu as escadas, entrou em seu apartamento e desatou a quebrar tudo na casa. Pratos, copos, televisão, estante... Tudo voou para o chão e paredes em questão de segundos. Foi então que se deu conta que Pardo estava tremendo de medo e a olhava firmemente, seus olhos mais esbugalhados que de costume. Ela tentou se aproximar, o cão rosnou. Sentindo suas pernas fraquejarem, se deixou cair na cama e chorar até seu corpo tremer e lhe faltar o ar. Agora até seu cachorro a rejeitava. "Inferno de vida maldita!". Pardo subiu na cama, aparentemente compadecido do sofrimento de sua dona, e deitou na barriga dela. Lúcia não resistiu muito tempo e o sono a pegou desprevenida. Naquela noite com nada sonhou. Acordou ao amanhecer, com o cão babando em sua cara. Percebeu que deveria ter perdido a hora de ir para o trabalho. Olhou seu celular; sessenta e duas ligações perdidas do escritório. Esfregou seus olhos, se levantou com cuidado para que o bicho não acordasse, tirou a roupa molhada do dia anterior e aproveitou o frio para vestir uma blusa e esconder seu cabelo despenteado e a cara amassada.
Quando pôs o primeiro pé na rua sentiu certo alívio. Parecia que seus problemas haviam ficado no ontem. Se recordava de pouca coisa, mas algo muito importante havia mudado. Ela sorriu, agradecendo a Deus por ter tido aquele ataque de insanidade e jogado tudo pro alto. Provavelmente seria demitida, porém simplesmente não conseguia se importar. Ia fazer o que não fazia há anos: ir a um restaurante. Achou um que servia comida italiana e entrou, ignorando absolutamente suas roupas horríveis e sua face manchada pelo rímel, blush, sombra e todas essas coisas que mulheres insistem em colocar no rosto para disfarçar a beleza natural. Sentou-se à mesa e esperou pelo atendimento. O dia estava nublado, mas o sol parecia lhe sorrir por detrás das nuvens. "Que se dane tudo! Hoje nada me abala!".
Mal sabia ela que estava redondamente enganada. Um homem adentrou o recinto de mãos dadas com uma mulher muito bonita. Lúcia sentiu o perfume e na hora lhe veio à cabeça a imagem de João. Viu os dois caminharem até o balcão e pedirem algo para beber. A mulher ria, mas não parecia feliz. O homem não mostrava a face e a conexão entre eles ecoava ruídos desconcertantes, somente audíveis àqueles que um dia já se apaixonaram. Quando ele se virou de lado para beijá-la a boca, a suspeita de Lúcia foi confirmada: era João, o mesmo João que lhe atormentava o pensamento há mais de um mês. Ela simplesmente se levantou e foi embora, seus olhos mareados. O sol surgiu, quase se opondo à infelicidade que ela sentia naquele momento. Pensou em fugir de tudo, mas logo lembrou que era pobre e não conseguiria se sustentar por muito tempo. Tomou outra decisão, contrária à anterior, típica das pessoas que não se atrevem a arriscar.
Chegou ao seu prédio, alçou penosamente seu andar e foi tomar um banho. Ao sair, discou o número do seu trabalho e avisou a Rubens que logo estaria lá, mesmo que tudo aquilo estivesse acontecendo em pleno domingo. Ele gritou ao telefone e ela apenas escutou, pedindo perdão enquanto se arrumava. Nesse dia não quis se maquiar. Pegou sua bolsa, deixou comida para Pardo e lhe acariciou a barriga. O cachorro abriu os olhos, mas logo se entregou ao cansaço e dormiu. Ela sorriu como se chorasse e se foi de seu apartamento, decidida a esquecer de vez aquele homem que tanto a fizera sofrer.
O sol lançou-lhe seus raios, o calor ardeu em sua nuca. Ela abriu a porta do escritório e subiu as escadas. Rubens a esperava e quando a viu não lhe disse palavra. Apenas apontou para a pilha de papéis que ficara ali desde o outro dia. Ela sentou-se atrás de seu computador e pensou nas mil coisas que poderia estar fazendo numa manhã ensolarada de domingo. Olhou para o relógio que já se mostrava apressado; oito ou nove minutos para as onze. Dessa vez, no entanto, ele competia consigo mesmo. Ninguém para entrar correndo na sala, nenhum perfume ou voz a tomarem conta do ambiente. Só folhas e um teclado velho. Lembrou de seus pais, olhou o calendário e então recordou o quão especial era aquela data: há exatos dez anos eles a haviam abandonado. Limpou rápido uma lágrima solitária que escorreu pelo seu rosto.
Quatro minutos haviam se passado e Pardo invadiu seu pensamento. Essa noite, quando voltasse para o seu lar, ele certamente faria uma festa e lhe lamberia a cara. Ela, por sua vez, arrumaria a casa e no dia seguinte faria mais um empréstimo para comprar tudo que em seu ataque de fúria havia quebrado. Vale lembrar que Lúcia não tinha ambições. Vivia muito bem, obrigada, em seu minúsculo apartamento. Não desejava mais dinheiro, menos ainda amor. Aliás, ter este passava longe de seus planos. Preferia não ser amada e esquecer que um dia amara. Lembrou da cena do casal se beijando e por breves segundos sentiu vontade de expelir sua alma pelos olhos, mas conteve suas lágrimas.
Bem, o que Lúcia não imaginava era que a mulher junto a João se chamava Maria. E ela realmente não esta estava feliz ao lado dele, pois em seu coração só havia Pedro. Mas Pedro não a amava, como já sabemos. Pedro era perdidamente apaixonado por Fernando, embora este só tivesse olhos para Lúcia. Mas não a Lúcia que conhecemos, e sim uma outra que não o queria. A nossa Lúcia, bem, ninguém jamais amara. Exceto, é claro, Pardo, seu cachorro tão querido. E nesse caso o sentimento era recíproco ou, pelo menos, parecia ser. Difícil discutir os sentimentos de um animal, pois o ser em questão não pode dizê-los. Ainda assim, ela acreditava ser correspondida pelo mostrengo de quatro patas.