domingo, 30 de outubro de 2011

O maior arquiteto

Há um tempo demoli uma casa. Já havia lhe consertado as paredes, ajeitado as janelas, remodelado todo o interior e ainda assim a visão não me agradava. Parecia-me, àquele momento, um tanto espaçosa demais, meio sem identidade, perdida num mar de confusões e cores deslocadas. Faltava-me pouco descontentamento para que finalmente a pussesse abaixo. O sentimento foi-me completado e a atitude tomada quando veio-me à mente a idéia de outra construção.
Essa nova casa seria menor, com espaços um tanto mais estreitos, um jardim à sua frente e pinturas mais vivas. Tencionava eu enchê-la de alegria para que pudesse aos outros também fazer sorrir. Se tão boa me parecia, tanto difícil quanto bela também se tornava. Mas pus-me a erguê-la. Tijolo sobre tijolo, dia após dia. Semanas ensolaradas de esforço e exaustão, com pouca ou nenhuma pausa pra alguma reflexão. Ao cabo de 40 dias eu a havia concluído.
Reluzia, brilhava e se entregava ao sol como se entregam os amantes ao seu desejo pelo outro. Não lhe fiz muita propaganda a princípio, posto querer admirá-la e retocá-la aos poucos sem que tais coisas fossem influenciadas pela opinião alheia. E gostei, confesso. Gostei, na verdade, parece-me palavra pouco justa à intensidade do que senti; amei-a, seria melhor dizer. Amei-a com meu ser, deixei minha alma por ela - mas também para ela - vibrar. E foi ela, então, tudo para mim. Não esperava a retribuição do sentimento, logicamente; casas não amam. Pode até ser que o façam, mas nunca lhes demos bocas para que o falassem.
Alguns dias se foram até que eu finalmente a trouxe a publico. "Que obra divina!", diziam as mulheres. "Muito bem planejada!", homens da área concordavam. "Quero passar meus últimos anos aqui!", por fim os mais avançados em idade afirmavam. E todos a amavam, a todos ela conquistava, assim como a mim também fizera ao vê-la acabada. Engraçado como as paixões chamam-se fugazes apenas após terem-se ido.
Plantei as primeirais flores e vi em minha mente o belíssimo jardim que ali havia de se desenvolver. Maravilhoso e imponente em sua pequenez e simplicidade. No entanto, algo começava a soar-me estranho. Uma voz trazida aparentemente pelo vento dizia-me não ser aquela casa algo tão bom; contrariava, entretanto, meu coração, que a ela se doava e em sua homenagem ainda prestava elogios. Eu ignorava ambos e me atia a prosseguir meu trabalho. Sem muito pensar, sem muito pestanejar.
Aconteceu que um mês após tal episódio a voz do vento já não mais me soprava aos ouvidos, mas ao coração; este, por sua vez, contaminava-se com a blasfêmia proferida contra a edificação e abstinha-se de sentir o mesmo amor que outrora lhe fora tão inevitável. Eu ignorava agora aquilo que havia ignorado antes e atia-me a pensar, sem muito trabalhar, se a escolha de construí-la fora tão acertada quanto me parecera logo de início. Talvez o vento estivesse correto. Talvez as pessoas tivessem sido iludidas pelo novo, talvez eu mesmo houvesse me deixado persuadir por tanta novidade. A casa não era bela, afinal. Sentei-me, pensando quando a destruiria, pois não me parecia boa idéia tentar remendá-la. Soneto não era, certamente, mas assim como se faz poesia eu também a fizera.
Para a obra não chamei ninguém. Fui-me sozinho, descalço e, dessa vez, sem rumo fixo. Chegando-me frente a ela agachei-me e observei. Vieram-me de súbito os motivos pelos quais deveria destruí-la. Seus espaços eram demasiadamente estreitos, aquele jardim não era tão atraente e as cores vivas cegavam os olhos. Tanta alegria me parecia despropositada. Melhor era fazer uma outra, maior, mais larga, com uma pintura mais fria e possivelmente menos convidativa. Quiçá uma que se assemelhasse mais àquela que antes dela viera. O descontentamento foi-me então completado e a atitude, tomada.
No dia seguinte já não havia tijolo sobre tijolo, apenas ruínas, escombros coloridos. O céu estava nublado e eu iniciara a construção do que viria a ser a próxima casa. Não demoraria muito, cria eu, para que eu a vislumbrasse em sua concretude. Chamaria uma vez mais muita gente para contemplá-la e amá-la juntamente a mim.
O tempo se passou, eu a terminei e depois também a demoli. Demoli muitas outras que com muito ou nem tanto esforço construí. Meus amores por elas variaram em sua duração, mas sempre tiveram a mesma intensidade. Arrebatando-me por segundos ou meses, faziam-me vivo por aqueles instantes. Hoje tenho uma cidade inteira feita de entulho. Às vezes a acho feia e dela quero fugir, mas há momentos em que a amo como se fosse tudo que eu tivesse. Talvez a vida seja assim mesmo, talvez precisemos quebrar e construir, sem nunca parar, até achar uma casa que não derrubaremos. Uma casa que nos verá cair, que estará lá no dia de nossa demolição e resitirá, mais que nós, à impetuosa voz do vento. Uma casa que permanecerá até que alguém a ache desnecessária e, no seu lugar, resolva derrubá-la.

domingo, 23 de outubro de 2011

Uma escrava fugidia.

Não queria me deixar embalar. Não queria me deixar pertencer, menos ainda ser pertencido. Queria só caminhar sem minhas barreiras ou os empecilhos de outrem. E acreditei ser capaz. Acreditei no que me diziam meus guias interiores, ano após ano construídos com aqueles minúsculos blocos formadores dos sonhos. Eles sempre me disseram uma coisa quando o mundo me mostrava outra. Tão enganados quanto eu, pobres infelizes.
No fim da estrada soube por uma voz externa que o mundo é assim mesmo. Tudo que nos conquista, nos amarra. Tudo que deprezamos nos liberta. Pois desprezei minha vida então, se assim me viria de bom grado a liberdade. Mas não veio. Em seu lugar mandaram a agonia, o pesar e a lamentação. Talvez os sentimentos também tenham suas amarras, suas limitações e não possam andar por aí e se atirar em quem bem entenderem. Pensaram ser livres e usaram poetas crentes na liberdade para assim mostrarem-se ao mundo. Tão enganados quanto eles, pobres infelizes.
E a hesitação optou - ou foi ordenada - por fazer morada em mim. Achei ser a indecisão alguma forma de liberdade. Se todos escolhem, não preciso eu também fazê-lo. Isso me soou, por breves instantes que agora não sei precisar, como aqueles ventos de liberação da alma dos quais tanto nos falam. Mas senti então serem talvez os mesmos que a Enéias naufragaram e agora tencionavam levar-me junto. Desobedientes que eram, embora ainda subjugados às suas próprias ambições. Tão enganados quanto todos, pobres infelizes.
Tentei esvaziar-me, mas percebi que o vazio era tão preenchedor quanto a plenitude. E parei de julgar. Só entendi que o amor não me libertaria, pois junto a ele vinha o apego. O ódio tampouco me parecia saída, pois me forçaria a não gostar. O gostar me pareceu duvidoso; não era intenso como o amor - pelo menos assim me haviam ensinado -, mas não te largava sem deixar sequelas. Sequelas de comportamento ou de falta do mesmo. E nada mais me pareceu liberdade, posto ter tudo o seu lado oposto.
E me vi no espelho, este infeliz objeto obrigado a refletir mesmo aquilo que não lhe apraz. Vi os outros no espelho. Vi o mundo num espelho, pequeno, guardado dentro de um quarto escuro. Tão infelizes todos nós, pobres escravos. Escravos da química, da biologia, do universo, do planeta, dos outros, de nós mesmos. Escravos do ideal utópico da liberdade. Libertos apenas na utopia que nos escraviza. Por ela matamos, por ela morremos. Por ela sorrimos, por ela choramos. Dela nascemos, mas a ela talvez não voltemos. Uma escrava fugidia, que vive para nos servir e escravizar.
Tudo que nos conquista, nos amarra. Tudo que desprezamos nos liberta. Melhor consertar essa parte. 


sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Uma queda eterna

You fall. You fall and you wonder. You wonder if it will ever stop. Maybe you will fall forever, endlessly screaming in silence, waiting for someone to reach out a hand for you to hold. But no one ever came, no one will ever come. You realize this is your fate, falling forever and never being able to help yourself. I guess I'm not gonna change at least not now, not before I die. But if I'm doomed to this I should consider keep on living. Is it a good choice? Actually, way more appropriate than asking 'bout "considering" something would be speaking of possibilities. So, is it possible to keep on living?
Disappearing would be a good way out of this situation. A good way out of myself. In fact, the problem is who I am, who I've created inside of this body. This fucking confused, crazy, unstable and not realiable creature that lives inside this matter. The matter will disappear and will then take away these scars. I don't want them anymore. I don't wanna face myself in the mirror anymore. It only increases the pain, it only hurts more and more and I can find no cure for my disease. Day by day, I live but I'm not happy. I didn't ask for this, I didn't ask for existing. That was not my choice. So why am I forced to bear a choice that wasn't mine in first place?
It's a difficult decision but I swear to God I see no other solutions. I don't have any strenght left to rise up and keep fighting. And I just can't find it anywhere though I've searched for a whole life.
I'm just so lost. There's no light waiting for me in the end of this huge, scaring tunnel. There's only darkness, fear and sorrow. It's a cycle which I can't follow anymore.

sábado, 1 de outubro de 2011

Olhos fechados (Parte 1)


Correu. Foi-se em direção à porta na maior velocidade que conseguiu atingir, mas o tempo, ao que parece, naquele dia não se inclinara à bondade. Seu relógio já lhe alertava sobre o atraso e agora o metrô tratava de revolver o problema momentaneamente enterrado. Parou a poucos, contáveis centímetros do trem e bufou. Não é possível que meu dia esteja desse jeito. Hoje a sorte resolveu virar a cara para mim, pelo visto.
         Aparentemente enganara-se, pois as portas do vagão abriam-se novamente à sua frente. “Não segure as portas do trem. Isso provoca atraso em todo o sistema”. Ok, isso não vira ninguém fazer, mas já que aquela mesma sorte, há até alguns segundos distante e impassível, agora girava um pouco o rosto para o lado a fim de lançar-lhe um olhar de soslaio era melhor que aproveitasse a deixa e adentrasse logo o veículo.
         Pelo menos isso, pelo menos isso. Sentou-se ao lado de uma criança inquieta que rolava seus dois carrinhos pela janela. “Mãe, mãe, o azul é mais rápido, olha!”. A mulher dirigiu ao garoto um sorriso, fingindo se importar mas lembrando a si mesma de que o marido ainda não voltara de seu passeio da noite retrasada. “Onde estará, meu Deus? Como pode sumir assim? Será que o canalha me trocou por uma vagabunda por aí? Mas se eu pego ele... vai ver que dele não sobra nem metade”. Ah, agora essa barulheira. Vou é me sentar em outro lugar. Ninguém merece criança chata a essa hora do dia.
         E levantou-se. Fisicamente com o andar habitual, mas mentalmente com a mesma pressa – ou talvez até maior – que tivera fazia alguns minutos em sua tentativa de não perder o trem. A mulher e o filho ficaram para trás; ele brincando com a irrealidade externa da brincadeira e ela tentando concretizar internamente aquilo que lhe parecia ainda pouco real. Caminhou por entre os carros até alcançar quase a outra extremidade da composição. Sentou-se novamente. Que bom, aqui não tem ninguém irritante. Sua cabeça parecia ser atraída para a parede. O sono colaborava, claro. Sem pestanejar recostou-a e relaxou. Só não podia perder a estação. Daqui três preciso descer. Não posso esquecer de pegar as flores no quintal da dona Neide olha que coisa mais bela! Quero uma assim na minha casa. Não, não, sem muito cheiro se não a alergia me ataca e você viu o noticiário? Chuva de asteróides? Imagina, que absurdo a mãe dele dizer tais coisas. Ah, olhe o céu. Olha que coisa mais bela!
         Pum! Seu corpo sacudiu e seus olhos piscaram. Cochilara sem perceber. Preocupou-lhe saber onde se encontrava e olhou para fora do trem. Ainda bem, faltavam duas estações. Que bom que não dormi tanto assim. Mas preciso tomar cuidado, senão dona Neide! A senhora por aqui! Como vai? Pum! Droga, não posso dormir! Por que diacho não fui pra cama mais cedo noite passada? Estou tão cansad... “Uma chuva de meteoros cairá essa noite na Terra. Para aqueles que estão nos observatórios do Hesmifério Sul será um espetáculo”. São meteoros, não asteróides! Esse povo tá doido! Preciso contar a ela que... Pum! Acordou novamente e arregalou os olhos até quase saltarem das órbitas. Acorda, caçamba! Se eu passar da estação e atrasar ainda mais meu chefe me estrangula. Acorda, senã...
         Seu olhar se deteve. O corpo inteiro retesou e o coração saltou-lhe à boca. Se a beleza podia tomar forma humana, se lhe era possível encarnar-se entre os pobres mortais desse planeta então ela estava ali naquele momento. Olhos brilhantes, cabelo como nenhum outro e corpo esculpido a dedo pelo mais talentoso artífice já existente. O rosto se delineava em pura perfeição. O mundo definitivamente parara. Como poderia aquilo ser real? O que é isso? Ele é o homem mais lindo que já vi em toda a minha vida. E seus 29 anos lhe davam certa moral para dizê-lo. Será que ele tá me vendo? Meu Deus, mas e se ele... Quantas estações faltam? Merda, é a próxima. Logo agora que esse cara chegou aqui. O que que eu faço?
         Num misto de faz-não-faz, fala-não-fala, vai-não-vai levantou-se. O leve balanço do trem desnorteava um pouco mas não era suficiente para lhe tirar o equilíbrio. Um passo à frente, dois para trás e o arrependimento lhe golpeando incisivamente o coração. O que eu posso fazer, oras? Falar um oizinho como se fôssemos colegas? Não, não rola. Mas ele é tão... “Próxima estação, Pinheiros". Ele levantou, ai meu Deus! Será que eu não to horrível? Deveria ter me arrumado melhor. Ah, não! Saiu do metrô junto com a multidão (coisa rara na estação Pinheiros esse metrô cheio assim!) debatendo em cochichos retóricos o quanto aquele dia se lhe mostrava ingrato. Perder um cara lindo daqueles, como pude?
         Verdade é que o rapaz – ou deus grego, se assim convier – apenas mudara de lugar, sem insinuar realmente intenção de deixar o meio de transporte. Melhor ir trabalhar e não pensar nessas bobeiras. Ganho muito mais! E foi-se, com pressa, desassossego e nervosismo. Um pouco de cada pra completar seu belo dia. É, isso mesmo. Tudo pra completar meu dia.